Manaus, 16 de abril de 2024

Centro Cultural Velha Serpa

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O presente texto resulta de uma solicitação da instituição em epígrafe, “para construir um projeto de visitação teatralizada do espaço”. Ao longo de mais de meio século, temos nos posicionado na posição de estudar, pesquisar e divulgar Itacoatiara, cuja caminhada histórica remonta aos 330 anos. Estamos sempre abertos a quaisquer questionamentos a respeito do tema, daí nossa imensa satisfação em acolher bem o pedido do Centro Cultural Velha Serpa que, em síntese, buscava:

“Mais informações sobre a história do Matadouro; a vida e administração dos superintendentes João da Paz Serudo Martins e Francisco Olympio de Oliveira; um pouco da história de vida do senhor Euclides Dias, primeiro administrador do local; informes sobre a visita do médico francês Emílio Brumpt ao Município e ao Matadouro; alguma história ou causo envolvendo o Matadouro ou funcionário deste; algum outro personagem interessante da época ou da história do Matadouro”. Subscritaram o documento: Grupo André Maggi / Fundação André Maggi. Maria Carolina Malta Lemos. (92) 3521 1044 / 3521 8000, ramal 8135 / www.grupoandremaggi.com.br.

O CC Velha Serpa, criado e mantido pela Fundação André Maggi, que o inaugurou em 1º de dezembro de 2009, funciona no edifício do antigo Matadouro Municipal, uma construção da segunda década do século XX – requintado monumento em estilo clássico plantado no coração de Itacoatiara que realça a paisagem urbana de nossa cidade. Depois de cedido pela Prefeitura Municipal, o prédio histórico, então em ruínas, foi restaurado pela Fundação em suas linhas originais. Além da gestão cultural, a iniciativa reporta o resgate da história de Itacoatiara por meio de uma exposição permanente de fotos antigas do Município. O local também se firma como polo de gestão educacional e de geração de emprego e renda, mediante a realização de cursos de artesanato e oficinas para a comunidade.

 

Matadouro Municipal antes de 2009

Matadouro Municipal antes de 2009.

 CC Velha Serpa

Matadouro Municipal após reforma de 2009. 

Ao longo dos últimos cinco anos, o CC Velha Serpa vem propiciando reunir expressivos segmentos da população para assistir palestras, exposições, participar de cursos e interagir com figuras do mundo sociocultural, local e regional. Nós próprios ali realizamos o I e o II cursos de História de Itacoatiara – nos períodos de 03 a 05/08/2011 e de 06 a 08/08/2012 – sem nenhum ônus para a instituição e seus participantes – estudantes, professores e intelectuais. Tais eventos tomaram os três turnos diários, sendo ao final emitidos certificados aos que tiveram mais de 70% de frequência. Dois momentos culturais de singular significado em que mais de 300 pessoas, interagindo com este historiador, puderam se abeberar do tema ITACOATIARA.

O histórico da construção do prédio-sede do CC Velha Serpa, sua importância na atividade econômica do Município e o papel de seus fundadores e antigos administradores estão inseridos às páginas 25/26 do meu segundo livro Itacoatiara: administrações municipais, realidade presente, publicado em 1970, e às páginas 109, 120/124, 149/150, 159/164 e 175 do meu sétimo trabalho Cronografia de Itacoatiara, volume 02, editado em 1998.

Placa indicativa de inauguração do prédio

Placa indicativa de inauguração do prédio.

Placa referente à concessionária do prédio

Placa referente à concessionária do prédio.

A construção desse próprio municipal deu-se logo em seguida à queda da borracha. Obra iniciada em meados de 1918, na administração do superintendente João da Paz Serudo Martins, e concluída na gestão do superintendente Francisco Olympio de Oliveira, que o inaugurou em 1º de fevereiro de 1920 – cuja solenidade contou com a presença de expressivas figuras do mundo politico e social, tanto de Itacoatiara como da capital do Estado, inclusive o representante do governador Pedro de Alcântara Bacellar (1875-1927?), e encerrou-se à noite com a realização de um concerto musical. A cobertura jornalística do evento esteve a cargo do jornal “A Imprensa”, editado em Manaus. O construtor e, mais tarde, seu arrendatário-concessionário foi o engenheiro Euclides de Figueiredo Dias.

Importante esclarecer que a construção do Matadouro de Itacoatiara, tal qual a do antigo Mercado Municipal construído na mesma época e lamentavelmente demolido na década de 1970, foi uma pioneira ação de Parceria Público-Privada (PPP) antecipando em mais de oito décadas a experiência implantada em nosso País baseada no contrato modalidade Concorrência Administrativa, previsto na Lei Federal nº 11.709/2004, que contempla a construção e equipagem da unidade, manutenção predial e de equipamentos, além de outras providências relacionadas ao seu pleno funcionamento. Ou seja: quando ainda nem se sonhava com o marco regulatório nacional das PPPs, a Superintendência do Município de Itacoatiara demonstrava-se criativa, já avançava no tempo. Sim, porque só realizou pagamento ao contratante após o início da atividade do Matadouro, não havendo, na fase de sua construção e equipagem, repasse de quaisquer recursos por parte da autoridade municipal.

Localizado à Rua Borba, no bairro de Pedreiras, faz frente para a antiga Rua Autaz (mais tarde Rua Benjamin Constant e, finalmente desde o final de 1957, Avenida Conselheiro Ruy Barbosa). Construção simples, mas elegante e cheia de detalhes: paredes trabalhadas em adobe, pedra, cimento e cal; vigamento superior, suporte de cobertura, de ferro, importado de Liverpool; telha utilizada na cobertura, tipo Marselha, é originária de Lisboa; pavimento de mosaicos alvinegros produzidos numa olaria local, resquícios da colônia agroindustrial Itacoatiara, donde se originou o bairro da Colônia – estabelecimento criado em meados do século XIX, sob a coordenação do industrial Irineu Evangelista de Souza, visconde de Mauá (1813-1889), por concessão do imperador dom Pedro II (1825-1891).

João da Paz Serudo Martins foi eleito superintendente (cargo equivalente ao de prefeito) pelo Partido Conservador (governou o Município de 01/01/1917 a 31/12/1919). Sua família descendia de políticos tradicionais que militaram em Itacoatiara desde a época imperial. Era originário da Costa da Conceição, onde tinha propriedades, região bastante habitada, à época, sua base política e principal reduto eleitoral.

Quanto ao superintendente Francisco Olympio de Oliveira, eleito pelo Partido Republicano Amazonense (governou de 01/01/1920 a 31/12/1922), nasceu em Quixeramobim/CE em meados de 1877. Também conhecido pela alcunha de Coronel Chico Olympio, era casado com a senhora Maria de Lourdes Coelho de Oliveira. Imigrante nordestino chegou a Itacoatiara em 1912 radicando-se na região de São José do Amatari, acima da Costa da Conceição, onde passou a exercer atividades de campo. Graças ao apoio de Silvério José Nery (1858-1934), ex-governador do Amazonas (1900-1904) e político de muita influência à época, Chico Olympio fundou em 1917 a fazenda “Santo Antônio” passando de agricultor a pecuarista. Na política fez oposição ao superintendente João da Paz Serudo Martins e, como dito antes, sucedeu-o à frente da administração municipal. Além de concluir e inaugurar o prédio do Matadouro aparelhou-o e deu-lhe condições de completa funcionalidade. Em 1926, depois de vender sua propriedade em Amatari, transferiu-se para Fortaleza/CE, passou um tempo em Salvador/BA e, em 1929, mudou-se definitivamente para Rio de Janeiro, antiga capital da República, onde faleceu aos 23 de fevereiro de 1962.

 

 Francisco Olympio de Oliveira. Foto de 1962.

Francisco Olympio de Oliveira. Foto de 1962

 

Idealista e empreendedor, assim que chegou ao Rio de Janeiro Francisco Olympio criou um produto destinado a preservar a beleza feminina: o Leite de Rosas. Segundo o site www.leitederosas.com.br, “a história da empresa se confunde com a jornada de sucesso de tantas famílias brasileiras”. Resumindo: dita empresa começou com Francisco Olympio, um seringalista que se mudou do Amazonas para o Rio de Janeiro no início do século XX. Aos 52 anos, criou a fórmula de um cosmético feminino com a ajuda de um amigo farmacêutico. Em sua própria casa, no bairro de Laranjeiras, zona sul carioca, ele e a esposa produziram e embalaram as primeiras unidades da loção, que teve o primeiro registro datado de 1929, conferindo-lhe o direito de produzir e comercializar o produto batizado de Leite de Rosas.

Para divulgar o novo produto, Francisco Olympio colava cartazes pelas ruas do Rio de Janeiro. Depois passou a anunciar nas rádios e a patrocinar artistas como Orlando Silva (1915-1978) e Elza Marzulo (? – 1997). O visionário empresário foi o primeiro a usar mulheres de biquíni em propagandas. Carmen Miranda (1909-1955) foi uma das estrelas que a marca teve como garota-propaganda. Graças ao seu apoio, a amazonense Terezinha Morango venceu o concurso Miss Brasil-1957 e consagrou-se como a 2ª mulher mais bela do mundo no concurso Miss Universo do mesmo ano.

Nos anos 1940, a primeira fábrica foi construída em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Com o afastamento por doença do fundador, em 1961 (morreria no ano seguinte), seu genro, Henrique Ribas, assumiu o comando da empresa. Na última década do século passado, a empresa ampliou o portfólio com o lançamento de sabonete hidratante, novas linhas de desodorante, cremes hidratantes e novas fragrâncias do tradicional Leite de Rosas. Hoje a Leite de Rosas, com 85 anos, continua confiável e cheia de vida.

Atualmente, em sua quarta geração de gestores [sob a direção dos netos de Francisco Olympio], a Leite de Rosas aposta no reposicionamento da linha de produtos no mercado com novas embalagens e logomarcas mais modernas, e investe em campanhas publicitárias para comemorar os 85 anos da empresa neste ano de 2014.

 

Sala de exposição: ao alto, fotografias sobre diferentes épocas do prédio. Destaque para o piso de mosaicos alvinegros

Sala de exposição: ao alto, fotografias sobre diferentes épocas do prédio. Destaque para o piso de mosaicos alvinegros.

 

Como dito antes, desde sua inauguração o Matadouro Municipal passou à direção do engenheiro Euclides de Figueiredo Dias. Provavelmente originário de Pernambuco, respondia pela empresa L. Dias & Irmãos fazendo parceria com a Associação de Marchantes de Itacoatiara. L. Dias & Irmãos presumivelmente pertencia ao mesmo grupo da Empresa Cinematográfica Theodoro Dias & Cia., a qual, nessa mesma época, instalara um cinematógrafo no Teatro “Cinco de Setembro” que desde 1914 funcionava no centro de Itacoatiara. Relatórios da Prefeitura atestam que durante mais de 20 anos o Matadouro continuou “sob a criteriosa direção do senhor Euclides de Figueiredo Dias”. Seguiram-se-lhe, na década de 1950, o administrador José Republicano de Menezes (1905-1975), também conhecido como Zeca Carolino; e na década de 1960 o gestor Paulo Gomes da Silva (1911-1993), o popular Paulino Gomes. No início de 1998 a Prefeitura Municipal mandou desativar o velho abatedouro. Por que naquele ano estavam em vias de serem inaugurados dois matadouros-frigoríficos da iniciativa privada. Decorrido quase uma década e sob o pretexto “de ser remodelado e adaptado para dar abrigo ao Museu Municipal”, o imóvel ficou em ruínas. O Museu não saiu do papel e o prédio finalmente foi requisitado pela Fundação André Maggi para sediar o CC Velha Serpa.

 

Sala de exposição: no alto, uma cabeça de boi em meta caldeira com dois tachos para escaldamento de vísceras de animais; pedra de abate de animais; argola para prender boi.

Sala de exposição: no alto, uma cabeça de boi em metal; caldeira com dois tachos para
escaldamento de vísceras de animais; pedra de abate de animais; argola para prender boi.

O gado abatido no Matadouro era comprado no baixo Amazonas e algumas vezes no Território Federal de Rio Branco, atualmente Estado de Roraima. Durante muito tempo citado como “modelar estabelecimento industrial”, o Matadouro Municipal recebeu muitas visitas, a exemplo “do prefeito de Canutama, Capitão Pessoa”, em meados de 1929. Antes, em 29 de fevereiro de 1928, o estabelecimento foi visitado em conjunto pelas seguintes autoridades: governador do Amazonas Efigênio Ferreira de Salles (1879-1939); senadores Aristides Rocha e Silvério Nery; deputados federais Dorval Pires Porto e Jorge de Moraes; prefeito municipal de Manaus Francisco de Araújo Lima; presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas desembargador Antônio Gonçalves de Sá Peixoto; procurador-geral do Estado Raul da Matta; e diretor-geral de Instrução Pública do Estado do Amazonas Agnello Bittencourt (1876-1975).

Em 1924, ali compareceu o cientista francês Émile Brumpt, professor catedrático de Parasitologia da Faculdade de Medicina de Paris e membro honorário da Sociedade Americana de Parasitologia. Nascido em Paris em 10 de março de 1877 e falecido na mesma cidade em 08 de julho de 1951, esteve várias no Brasil. Primeiramente, em 1913/1914, quando organizou um curso de Parasitologia na recém-fundada Faculdade de Medicina de São Paulo, e em Mato Grosso estudou malária, leishmaniose e doença de Chagas. Seguiram-se duas outras viagens: em 1922 para dar seminários em diversas cidades sugerindo métodos preventivos contra a piroplasmose bovina e a anaplasmose; e em 1924 no Rio de Janeiro realizou várias palestras sobre tais temas; de lá veio à Amazônia passando por Itacoatiara.

Émile Brumpt desembarcou em nossa cidade no final de agosto. Provavelmente recepcionado pelo senhor João da Paz Serudo Martins, presidente da Intendência (Câmara Municipal) e eventual chefe da Superintendência do Município (Prefeitura), cargo que assumira em lugar do superintendente titular Antônio Guaicurus de Souza, deposto pela revolução de 23 de julho de 1924, deflagrada em Manaus pelo tenente Alfredo Augusto Ribeiro Júnior. O sábio francês visitou protocolarmente o Matadouro Municipal, sendo ciceroneado pelo cientista brasileiro, ora residente em Itacoatiara, Manoel Nunes Pereira (1891-1985). O professor Émile Brumpt dias depois deixou Itacoatiara e rumou em direção a Manaus. Da capital amazonense seguiu para Nova Iorque, aonde chegou no dia 03 de outubro daquele ano de 1924.

Natural do Estado do Maranhão, graduado em Veterinária no Rio de Janeiro e um dos fundadores da Academia Amazonense de Letras, Nunes Pereira foi um antropólogo e ictiólogo que mais tarde se tornaria conhecido além das fronteiras do Brasil. Comissionado pelo Ministério da Agricultura, em 1918, desde lá começou a viajar como profissional pelo interior da Amazônia. Em uma de suas andanças pelo Amatari e Autazes, veio a conhecer o superintendente Francisco Olympio de Oliveira. Este, assim que assumiu, em 1920, nomeou-o para servir como inspetor veterinário do Município. Graças à sua interferência, Olympio baixou a Lei nº 334, de 24 de março de 1920, criando o Serviço Municipal de Estatística da Indústria Pecuária para regular as atividades do campo, estabelecer os direitos e deveres dos criadores e facilitar ao inspetor veterinário as inspeções periódicas às fazendas. As atividades do setor ganharam eficiência e se distinguiam pela organização. Os serviços de coleta e venda dos produtos pecuários, oriundos das fazendas no entorno da cidade, especialmente o leite, recolhidos em vasilhames limpos e higienizados, eram feitos com zelo e seriedade. O abate de gado no Matadouro e a distribuição de carne aos consumidores primavam pela higiene por que regularmente vistoriados. Tanto que a caldeira e os tachos utilizados para escaldar miúdos do gado abatido (conforme ilustração acima) foram adquiridos no exterior.

 

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 Vista do Salão de conferências. O historiador Francisco Gomes da Silva dando aula no II Curso de História de Itacoatiara – 2012

 

Há notícias de muitas estórias e causos envolvendo o Matadouro Municipal e pessoas que direta ou indiretamente nele atuaram. Tais fatos narrados aqui e ali, aleatoriamente, necessitam ser esclarecidos e cuidadosamente estudados. Vários personagens dessa trama (ex-servidores da instituição e/ou descendentes deles) ainda estão vivos e moram nas proximidades do antigo abatedouro, no bairro de Pedreiras, e certamente não se furtarão de prestar os esclarecimentos concernentes ao penúltimo quesito do questionário formulado pelo CC Velha Serpa. Se contatados e submetidos à pesquisa oral, suas narrativas ampliarão o leque de saber da comunidade local e trarão mais elementos de informação aos seus visitantes.

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Uma resposta

  1. Ola Historiador!!!
    O Senhor teria conhecimento de algo sobre o senhor Joao Ferreira Passos, o mesmk segundo relatos era dono de bateloes e embarcaçoes onde abastecia varias cidades entre elas itacoatiara com mercadorias.
    Conta-se também que o mesmo foi um dos fundadores da marçonaria nesta cidade.

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