Manaus, 29 de março de 2024

Violino em silêncio

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“Em paralelo à artista havia uma mulher generosa que passou a adotar crianças e jovens amazonenses para dar-lhes família, educação e amor”

Não mais se ouvirá os sons extraídos de um violino bendito nas mãos de uma maestrina de muitos méritos que, nascida em pequena cidade do interior do mundo gelado, transferida desde cedinho para Sófia, foi galgando destaques em concursos e prêmios locais e nacionais, conquistando reconhecimento de quantos foram seus mestres, colegas de estudo e de trabalho.

Um dia, inscrita em concurso público internacional levado a efeito na capital da Bulgária, além de se submeter as provas de qualificação ela prestava atenção pessoal à equipe que o Amazonas fez deslocar por várias cidades com o intuito de constituir sua primeira orquestra profissional para o Teatro Amazonas. Gentil, humilde, esmerada nos estudos, foi aprovada e imediatamente passou a integrar o grupo inaugural de artistas que, de várias partes do mundo, especialmente do leste europeu, foi contratado para trabalhar em Manaus.

Integrando a “família” de búlgaros – sim, porque eles constituíram uma só família imediatamente, ela chegou ao Amazonas determinada a permanecer. Professora do Liceu Claudio Santoro e depois da Universidade do Estado do Amazonas, concertista, solista, spalla da Orquestra Amazonas Filarmônica, sua carreira entre nós foi se solidificando. Em paralelo à artista havia uma mulher generosa que passou a adotar crianças e jovens amazonenses para dar-lhes família, educação e amor. Uma exímia professora.

Um dos seus líderes no trabalho em meio à floresta amazônica, Marcelo de Jesus, jovem maestro de muito sucesso e méritos, sintetizou em uma frase a expressão musical que se esvai para o campo da saudade: “o som mais lindo de violino que já ouvi”.

Não se sabe ao certo o que se deu com ela. O corpo físico caminhava com saúde precária e pouca atenção de sua parte, dizem os mais próximos. Em começo de fevereiro havia chegado da Europa pois concluía doutoramento, título que não lhe fazia falta, mas que almejava para coroamento de sua trajetória acadêmica.

Em tempos de crise de saúde pública de tudo se pode cogitar, antes como nos dias que correm em meio a tantas perdas de vidas humanas, o mundo das artes tem sofrido. Sofreu em 1918 com a gripe espanhola que assolou a capital amazonense em pleno governo do médico Pedro Bacellar. Havia sido assim, anos antes, com a febre amarela. Mas com essa mestra do violino foi o coração que resolveu parar, talvez pelo cansaço, talvez carregando saudades, tristezas e angústias aguçadas em sua alma pela fina sensibilidade de artista.

Não é a primeira grande artista que o solo amazonense passa a guardar e nossa memória fica devedora de reverenciar. A malária que grassou em Manaus anos seguidos, arrebatou muitos dos que se encontravam em temporada na capital amazonense: a atriz Thereza Zucchi, consumida pelo “tifo americano”, o maestro Jonathan Salvatore, diversos membros da companhia Calil &Aprea, a cantora italiana de Bolonha, Cleonice Campagnoli-Quiroli, falecidano Hotel Cassina, com 34 anos, assim como Amélia Pestana, José Batista, José Roxanes Ramalhete, Maria Beatriz dos Santos Leal, Virginia Lima e José Dominici.

Agora, sem razão outra que não os traçados próprios de nossas vidas, Margarita Chtereva atravessou o mundo do sol para habitar entre as estrelas. Estava dormindo quando foi arrebatada desse vale, quem sabe com acompanhamento de anjos, querubins e serafins para ser conduzida em encantamento para outras esferas nas quais novos trabalhos a esperam na trajetória de aperfeiçoamento do espírito eterno.

Para os que a conhecíamos e aprendemos a admirá-la no exercício da sua arte, nos deleitávamos com suas apresentações maviosas e sua posição destacada em nossa orquestra, sua presença permanecerá. No Museu do Teatro Amazonas o seu violino deve ser guardado em silêncio.

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