Manaus, 28 de março de 2024

Um pouco mais de Itacoatiara

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*Ruy Alencar (In memoriam)

Deixe que o leve em mais um passeio pela bucó1ica e sonolenta Itacoatiara dos anos trinta e tantos, quando por lá aportou a família Alencar. Meu pai vinha assumir a Coletoria Federal, cargo igualado em importância somente pelos de Prefeito e Juiz de Direito.

A primeira casa onde moramos, na esquina de seu Hilário Antunes, na rua Rui Barbosa com a rua Deodoro, hoje Adamastor Figueiredo, passou mais tarde a ser o Hotel Municipal, o único da cidade. Nossa segunda moradia, na mesma rua e confirmando que papai e mamãe haviam lido e gostado dos personagens do “best-seller” americano “Cheaper by the Dozen”, mostrava bem o tamanho de nossa família: o prédio e ainda hoje o Colégio das irmãs religiosas …

Do velho Hotel Municipal resta um casarão em ruinas (disseram-me pertencer agora a um ex-prefeito) e o Colégio sobrevive, velho e carcomido pelo tempo com suas paredes se cobrindo de limo!

Nessa mesma rua moravam, além do Seu Hilário, dona Laura, sua esposa e suas duas filhas: uma delas a Mocinha, muito branca, muito bonita e recatada, coma convinha às moças casadoiras da época. Um pouco mais adiante, no rumo da praça, ficavam de um lado a casa do Jason Hermida com sua Capitania dos Portos, logo adiante, no lado oposto, os fundos da casa do Alexandre Antunes, mais tarde prefeito da cidade e de quem eu ouviria papai dizer ser um verdadeiro gentleman, embora ainda não soubesse direito o que isso queria dizer. Na mesma direção davamos a seguir nos fundos da Padaria Bijoux, dos portugueses Magalhães e Brandao. Este era casado com a outra professora Olga, que a primeira, a nossa “Tetéia” e meu vulto inesquecível, era a professora Olga de Morais Rego, Figueiredo pelo casamento com o Adamastor. Chegando á praça de Nossa Senhora do Rosário (e não da Conceição, como erradamente falei antes), tínhamos a Mesa de Rendas numa esquina, o Café do “Seu” Natal e o cartório do “Seu” Vicentinho no meio e a Pernambucana na outra esquina. Hoje, a Pernambucana tomou conta do quarteirão inteiro, demoliu o prédio antigo, de arquitetura colonial bela e imponente, para colocar em seu lugar um caixão horroroso, em amarelo gritante. Parece que o feroz litígio em que se debatem os herdeiros dos Lundgren explodiu em Itacoatiara num parto de péssimo gosto. Nessa praça, além da igreja e do velho Grupo Escolar de madeira, havia o Gentil Miranda, onde posteriormente o José Monassa construiria sua nova residência e a Prefeitura o novo Grupo Escolar Coronel Cruz. O Gentil era um ourives dona de um carroussel, um mafua que quase sempre vivia quebrado, mas que, mesmo assim fazia a alegria da garotada.

Seguindo rumo às barrancas do rio, dávamos nos Correios de “dona” Dadade Perales, dama de grande educação e “finesse” e logo a seguir, o cabo submarino do Manuel Montenegro e dona “Mina” e sua turma, o “Zarico”, a “Sulica”, a “Milica”, o “Duque” e o “Pina”. Da família parece que a Maria do Carmo e o Miguel foram os únicos a escaparem dos apelidos. O “Duque” e o “Pina” eram meus companheiros de aula e das peladas em frente a Estrela “Sarapó”, irmã do “Chunito” e do “Capitão”. A Estrela, magrela e feia, era, no entanto, exímia dançarina e o fato por todos aceito em Itacoatiara era de que todo rapaz, chegada a idade de frequentar as festas, teria que ser “iniciado” pelas mãos (ou seria pelos pés?) da Estrela! Talvez pela falta dessa iniciação, eu jamais tenha me tornado um “pé de valsa”.

Depois dos Montenegros passávamos pela casa dos Mickelsen, cujos filhos, o Charles e a Betty foram os meus verdadeiros professores da bela língua de Albion, a “ilha que na Mancha um dia Deus ancorou”, nas palavras do poeta da abolição. Passávamos então pelos escritórios do Ezagui, Irmão, onde o “seu” Ozório Fonseca, um dos construtores de Itacoatiara pontificava coma gerente. Na esquina a casa de comercio e moradia do “seu” Nassib, pai do Neder, da Onorina e do João. Em frente, a casa do seu Barata, pai do Mario Barata, cujo casamento com uma das filhas do Manelito, fazendeiro da Boca do Carão, foi a maior festança a que já compareci! Ao lado, descendo para o rio, as escadarias com corrimão de correntes de ferro, acesso natural aos navios do Lloyd que ali atracavam.

Retornando rumo ao Jauary, na esquina da Dr. Minineia a casa dos Peixoto com o sobrado do Coronel Saldanha ao lado; as casas de dois dos Barros mais adiante e o Jose Stone, na descida. O velho Aquilino Barros tinha sido um dos homens mais ricos de Itacoatiara. Havia educado vários filhos na Europa, na Alemanha, mais precisamente. Tinha navios, serrarias, estaleiro naval, fazendas, comércio, a cidade quase toda lhe pertencia. De uma parte de sua herança, já esfacelada, um de seus herdeiros o Arico, cedeu o terreno para nele construir o novo aeroporto da cidade! Nossa maior convivência foi com a dona Lunila, esposa do Floro Mendonça, nossa vizinha, e com a Dadazinha, colega de meu “flirt” na época. O irmão mais novo, o Aquilino Filho, entre um gale e outro nos ajudava na tiragem do jornalzinho “O Olhudo”, editado nas nossas férias.

Dos Peixoto, além das beatas que mais tarde se tornariam freiras; de dona Odete, mãe do Djalma; da “Lala” e de dona Maria, havia ainda o Peixotinho, o Jose Peixoto e o Nelson, o comerciante da família e nem tão religioso quanto os demais. O nosso “inimigo figadal”, entretanto, era mesmo o Assis, mas somente nas brigas de bois bumbás. Seu boi era sempre o mais bem feito e o mais bonito. Na hora do “encontro”, todavia, o nosso por ser mais rudimentar e forte, levava vantagem. Só que “vaqueiros”, “amos”, “índios”, “mãe Catarina” tanto de um lado coma do outro, apanhavam em igual intensidade.

Já dentro do Jauary, próximo a Ponte da Estrada do Stone, encontrávamos o José Martins e o seu tendal de secar cacau e o “seu” Palmeira, com seus filhos mais velhos: a Sulamita, o Edmilson e a Deusa, a Deusdeth. No interior do cocal do Stone morava o Pagão, caboclo brancoso muito grande e muito forte, meio afrescalhado, iniciador de muito garoto na vida mundana. Tinha ainda a Família de uma garota ruiva, bonita e meio sarara, a quem os rapazes apelidaram de “bodinho”, dizem que pelo suor que exalava. “Fui ver para crer” e além de bonita era bem cheirosa, correta e educada. Tudo não passava de mentira e puro despeito dos colegas.

Retornando do Jauary e vindos pela frente da velha Usina da Luz rumo ao Centro, passávamos pela casa do Arminda Auzier, pai do Waldir, da Audezir e do Almir. Se descêssemos o barranco, logo adiante, lamas dar no comércio do Melício, onde se desfiava muita conversa fiada e se comprava de tudo, até “dirijo” coma no Interior se chamava cannabis. Essas conversas de pescadores e outros grandes mentirosos eram sempre regadas a meladinha o “mata-bicho” preferido.

Retornando a rua de Cassiano Segundo, na esquina oposta a Pernambucana, tínhamos o Radiante, grande armazém onde eram preparados os gêneros de exportação da firma Ezagui, irmão, principalmente o cacau. Os trabalhos eram dirigidos pelo Maneca, filho da dona Margarida e do Carlos Teixeira da padaria, e um grande atiçador das brigas de nós meninos. “Quem for mais homem, bate na mãe do outro”, ou seja, esfrega o pé num dos dais riscos feitos no chão, para representar a mãe de cada contendor … e lá íamos nós nos engalfinhar em luta corporal!

Logo adiante, o prédio ainda hoje bonito do Aquilino Barros, com a Farmácia do seu Jader Veras e o do Chico Athayde em baixo e o Clube Amazonas no andar superior (ou foi onde o SESP se instalou pela primeira vez?). Descendo a rua passávamos pela padaria Bijoux, a Tabacaria do seu Fares Simão – local onde nos fins da tarde papai, padre Pereira e doutor Marcilio jogavam gamão com o velho tabaqueiro; a padaria do Carlos Teixeira; a taberna do Nelson Peixoto, onde a Hayde, entre uma reza e outra dava uma de vendedora; a sapataria do José Simões na esquina contraria; a casa do Alexandre Antunes; a farmácia do Armindo com a Ninoca sempre elegante de gerente; a casa de comércio e moradia do José Monassa e, em Frente, o comercio do Antonio Coelho (mais tarde o cinema e o comercio do Adolfo Olímpio). Nas duas esquinas opostas ficavam – pelo lado do rio a pracinha onde Dom Paulo muito mais tarde mandaria colocar o relógio vindo do Canada. Isto no local onde anteriormente tinha sido a casa do Jorge e Dona Joana, pais do Dibo, do Jorge, da Teje, fundadores da firma Cinco Unidos, (mas nem tanto) … Atravessando a rua, onde hoje fica o Abdon Mamede vinha a funilaria do pai do Cesar. O Cesar era um comunista convicto, com quem diariamente discutíamos os problemas do Mundo, em grandes papos, todos eles terminando sempre bem pois no final falavam os mais altos a nossa amizade e o respeito que nutríamos um pelo outro. O Paulo Cachaça ou Sampaio (nunca foi bebedor e não sei o porquê do apelido) era participante assíduo dessas nossas tertúlias políticas!

Descendo a Rampa chagávamos ao prédio do Oscar Ramos, palco da maioria de nossas aventuras. Uma delas, lembra-me bem, foi subir no ponto mais alto do prédio, munido de um guarda-chuva grande, dos usados pela Panair á guiza de paraquedas, e sentir o frio gostoso do vento passar assobiando por nós, enquanto nos despencávamos rumo ao solo. Perigo de nos “esborracharmos” no chão? Claro que não. Cientistas conscientes que éramos, havíamos equacionado a altura, a velocidade do corpo em queda e a força da gravidade e havíamos reforçado o guarda-chuva com fios de costurar sacos, que partiam de cada ponta e iam até o cabo. Pulamos o Antonio e eu. Pena que enquanto decidíamos se deixávamos o Boby pular ou não, o irmão mais velho, o Óscar, não acreditando nos nossos cálculos matemáticos, acabou com a brincadeira …

Ao lado dos Ramos havia a marcenaria do mestre Antonio, onde passávamos muitas horas apreciando o trabalho de artífices como o Simeão e o “Pirapitinga” apelido que mais tarde passaria a ser o meu e de meus irmãos. A alusão ao peixe era também uma referência a voracidade com que devorávamos de tudo. Nessa mercenária fazíamos com a benevolência do dona, os nossos piões e iô-iô com galhos de laranjeiras requisitados do quintal do Zé Elias, que pela concessão era permitido participar das brincadeiras, Só não permitíamos entrar nelas o “Cadeira Elétrica” seu irmão mais velho e “alesado”, que um dia havia me furado as costelas com o bico do seu pião.

Já que entramos na área dos apelidos, interrompamos o nosso passeio pela antiga Itacoatiara por uns instantes e vamos aos cognomes, que a nossa cidade sempre foi pródiga deles.

Sosseguem os que ainda não tenham ultrapassado a fase de se zangar com a citação de seu apelido ou com o de algum parente seu. Este seu relato está ficando extenso demais com a pretensão de uma “crônica”. Foram salvos pelo gongo. Fica para a próxima, se houver …

*Professor. Filho do doutor Estácio de Albuquerque Alencar, dentista e exator federal, e de dona Tereza Girão de Alencar. Nasceu em Codajás/Am. em 15/05/1925. Ainda criança veio com seus pais e dois irmãos mais velhos, Horácio e Júlia Girão de Alencar, para Itacoatiara onde concluiu o curso primário. Fez o ginasial em Manaus habilitando-se como técnico de nível médio em comércio. Foi casado com a senhora Socorro Chaves de Alencar, nascida no rio Arari, com que teve 4 filhos: Ruy Jr, Renato, Roberto e Luís. Versado em inglês, trabalhou na RDC – Rubber Development Company que transportava, por aviões cargueiros, a produção de borracha do Amazonas para os EEUU no esforço de guerra. Serviu ao Exército Brasileiro no Rio de Janeiro, graduando-se em Cabo. Ao final da Segunda Guerra, retornou a Manaus onde passou a trabalhar em um escritório comercial servindo às empresas Philippe Daou e Ilídio Ramos & Irmãos, está sediada em Itacoatiara. Seu conhecimento da língua inglesa e o bom conceito que tinha em Manaus levaram-no a ser professor da rede pública e a criar – em parceria com alguns amigos e familiares – o English Speaking Club. Por sua notoriedade pessoal e o sucesso alcançado à frente dessa instituição, foi convidado pelo Departamento de Estado do Governo Americano a fazer um curso de pós-graduação na Universidade de Coral Gables, na Flórida. Um dos fundadores do Instituto Brasil-Estados Unidos, em 06 de julho de 1959, que o presidiu até sua morte em 13/04/2001, o professor Ruy Alencar, além de homenageado várias vezes no Brasil e no exterior, conviveu com grandes personalidades nacionais e internacionais. Em vida, caracterizou-se pela humildade e gestos simples e jamais escondeu a grande paixão que nutria por Itacoatiara. Em 2021, o ICBEU Manaus, celebra seus 65 anos de existência. Inicialmente denominado “English Speaking Club”, em 1958 passou ao nome atual : INSTITUTO CULTURAL BRASIL ESTADOS UNIDOS. Por motivo de registro de marcas e patentes, foi acrescentado pelo atual presidente, o Dr Fabian Barbosa, o nome Manaus. De modo que o oficial é “ICBEU MANAUS”.

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2 respostas

  1. Olá bom dia. Sou tataraneto de Aquilino Barros. Gostaria de saber se você tem mais informações a respeito dele e seus filhos. Sou bisneto de Arico Barros

  2. Seu comentário aguarda moderação
    Bom dia, sou filho de Cylon H Barros, neto de Nilo Barros e bisneto de Aquilino Barros. Também gostaria de saber mais sobre a história da família.

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