Manaus, 28 de março de 2024

Tradição lanomâmi

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Muito antes dos europeus chegaram ao grande vale, as diversas etnias que habitavam as margens dos rios já realizavam eventos de canto, música, dança e narração. É evidente que nas culturas tribais, em que o conhecimento é integrado a um todo, não havia a distinção entre arte, cultura e rito. Mas os povos originários em sua enorme diversidade cultural, marcaram o passar do tempo com celebrações e festas, quase sempre com encenações que se repetiam e acabaram por gerar uma tradição. Da mesma forma que nos, alvorecer da cultura ocidental o teatro não se distinguia do ritual, as artes-cênicas no grande vale se mesclavam em dramaturgia e celebração. Poderia ser listado um grande número de exemplos, mas um só será aqui utilizado, aquele que foi criado pela etnia mais antiga: a tradição Ianomâmi de narrar os mitos, que é mantida até os dias de hoje. Entre os diversos clãs ianomâmi os pajés utilizam uma técnica única, que é dinâmica e espetacular ao mesmo tempo. Como não possuem instrumentos musicais, o narrador ianomâmi faz de seu o próprio corpo uma orquestra e espaço cênico. Uma vez escolhido o mito a ser narrado, ele se pinta com a ajuda de amigos. Cada parte do corpo recebe um tipo específico de pintura, representando acidentes geográficos e personagens da gesta a ser apresentada. Estas pinturas corporais são imediatamente reconhecidas pela plateia e fazem parte de uma convenção estabeleci da. Uma vez terminado a “maquiagem”, o pajé ator inala o “ebene”, pó alucinógeno que faz a ligação com o mundo invisível, e começa a encenação, que pode durar de quatro a cinco horas. O pajé executa uma espécie de ópera à capela, num monólogo musical que se intensifica com o gestual, coreografia e posturas. A comunhão com a plateia é tão intensa, que cada personagem do mito pode gerar consequências. Por exemplo, se há a personagem de uma onça, esta pode ser feroz e todos se protegem. Uma onça enfurecida mata. O alucinógeno dá ao pajé a sensação de que ele cresceu e se tornou um gigante, observando o seu público na proporção de formigas. É uma ritual, de evocação de outra dimensão, mas ao mesmo tempo as gentes da aldeia acompanham o desenrolar da complicada trama, tal qual uma plateia segue uma peça longa e apaixonante. Nos primeiros tempos da colonização portuguesa, entre os séculos XVI e XVII, o modelo de ocupação era puramente militar e não há qualquer preocupação artística, mesmo nos momentos de ócios da caserna. Os colonizadores na Capitania do Rio Negro se protegem em fortes, em acampamentos. A vida cotidiana nestes aglomerados de soldados e rústica, seca e sem atrativos. Mesmo as celebrações religiosas, ou festas cívicas, são comemoradas de maneira insípida. Paradoxalmente, há menos ascetismo nas missões religiosas, sejam estes jesuítas ou mercedários. Os índios aldeados nas missões trabalham muito, mas ainda podem seguir algumas de suas festas, e o teatro catequético fincará raízes profundas nos descendentes mamelucos desses assimilados.

Deixará marcas tão acentuadas que mesmo após a expulsão dos jesuítas, já no século XVIII, durante a administração de Pombal, este teatro religioso permanecerá sempre latente.Com a borracha Manaus torna-se um centro urbano e faz contraponto com a cidade Belém. O teatro no estado saltará, sem qualquer preparo, dos “elogios dramáticos” dos amadores e do arraial de igreja, para o profissionalismo de corte europeu. Sairá do “Drama da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo” para “Mulheres em Penca”. E como a moça de família que interpretava a Virgem no drama da Paixão certamente não poderia estar num vaudeville picante, importaram o elenco ideal para os novos tempos. Este teatro de entretenimento, ao invés de tirar seus elencos da terra, o que era impraticável, trouxe de vapor companhias inteiras na mesma linha de importações de bens de consumo supérfluo.

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