Manaus, 29 de março de 2024

O Sermão da Selva (3)

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Bem-aventurados os que sonharam e os que plantaram lagos

no Tien Sham, duzentos lagos novos

bordejando de bálsamo a grande muralha ressequida

e aqueles que descobriram a outra face de Assuan,

importante barragem perigosa (quantas outras

socorrem de uma forma e matam de outra?)

e águas represadas aparentemente só frutíferas,

mas que aprisionam a cútis milenar e tenra

do lodo com que o Nilo dá de beber ao Egito

tanta verdura em meio a penedias

 

Porque esses, considerando a eficácia e a índole das águas,

e seu poder de vida sob os astros, que as governam,

respeitarão o desígnio constelado das nascentes

de fazer escorrer no corpo verde os rios,

livres no seu ciclo vital e na clemência

de sangue claro e artérias que recolhem

a selva em seus minúsculos sistemas e a transformam

no pão nômade e fácil dos cardumes,

na perpétua vocação de safra dessas margens.

 

Bem-aventurados os que sabem que as raízes e as folhas

e a flor que alberga a luz, que sonha nela,

tanto interessam à ave como à rocha

e ao homem e às brisas igualmente importam;

que um androceu perdido nas espumas

nutre indistintamente a argila e o peixe.

Esses não perturbarão os movimentos invisíveis

dos universos que se ajustam e se completam nos ecossistemas,

não frustrarão a saga de topázios das cachoeiras,

castas e nuas noivas do arco-íris,

trompas da mata e rendas dos abismos.

 

Desses o galardão maior será a vitória

da semente na várzea e a azáfama dos rios

carregando no braço as cestas das colheitas;

a juta a se estender nas touceiras do dia

seus vestidos de sol bordados pela terra;

e as canoas fartas levando os seus pomares,

e os homens combinando a próxima manhã,

enquanto, alta alegria, o menino se firma

no chão e ergue o seu riso contra a noite.

 

Porque o que a selva une a ignorância não separe,

e o que ela protege a mesquinhez não maltrate

e tudo que sua égide geral contém num abraço

disso também se livre, e se cumpra e se salve.

 
Sobre esta poesia, escreveu o grande Carlos Drummond de Andrade: “O Sermão da Selva tem a dignidade da poesia a serviço da vida. Assim essa voz poética seja ouvida, em coro com a dos cientistas e dos brasileiros de boa vontade, para que não se arruíne a floresta amazônica, esse bem da humanidade”. O texto integra o livro do mesmo título, do autor, publicado em 3ª edição em 1995, pela Editora da UFAM, tendo por prefaciador o falecido historiador Arthur Cézar Ferreira Reis (1906-1993).

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