Manaus, 28 de março de 2024

O padre da pá virada

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“Desprovido de vaidades, preparado por voto de pobreza, beneditino até, abria mão de presentes, agrados, lembranças e quaisquer relíquias que os fiéis ofertassem como agrado.

Não foi o primeiro padre a quebrar todas regras recomendadas pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana, por certo, mas ele ficou conhecido nas rodas de magistério, da igreja, da política e da sociedade de sua época, precisamente, por algumas estripulias e por seu desprendimento.

Professor de escola pública e particular da capital amazonense, notadamente do renomado Ginásio Pedro II, bem preparado em linguística, filosofia e versado em vários idiomas, foi muito bem reconhecido ao tempo do bispado de dom Antônio Macedo Costa que o mandou estudar em Paris e, especialmente, frequentar a Sorbonne, quando ainda menino e quase rapaz.

Além das aulas e das missas que costumava ministrar, esse padre paraense, do tipo mulato bem escuro, resolveu se envolver em política partidária e eleitoral conseguindo ser eleito para o mandato de deputado provincial. Foi nesse mister que se tornou, também, notável, pelo bom uso da tribuna, principalmente em oposição ao governo local, enfrentando de peito aberto todo e qualquer governante que não se empenhasse em questões de interesse popular. Tempos de pois, vencido pela idade, tornou-se irreconhecível para os de seu tempo, perdendo a lucidez dos pronunciamentos e das pregações.

O que se sabe, segundo seu biógrafo, o mestre Agnello Bittencourt, é que não se voltara, como muitos outros religiosos, para aventuras românticas nem se envolvera em negócios escusos no governo e na política. O rigor de seus discursos assustava, dizia um jornal da época, e a sua carreira eclesiástica desenvolvida em Manaus e adjacências, bem que merecia ter ganho outros ares, em cidades de maior porte.

Desprovido de vaidades, preparado por voto de pobreza, beneditino até, abria mão de presentes, agrados, lembranças e quaisquer relíquias que os fiéis ofertassem como agrado, para dar aos menos favorecidos, mantendo-se com sua batina surrada pelos lados da igreja de Nossa Senhora dos Remédios na qual pontificou por vários anos, merecendo a atenção de muitas centenas de devotos.

Episódio curioso de sua passagem entre nós, decorreu de sua viagem ao Rio Branco, atual estado de Roraima, na qual perdeu se pelos campos do lugar, sem que dele se tivesse notícia durante algum tempo, razão pela qual foi dado como desaparecido e morto. Por isso foi realizada missa de sétimo dia pelo descanso eterno de sua alma, com a piedade dos cristãos manauenses.

Pouco depois da missa eis que chega a Manaus, lépido e fagueiro, o nosso padre da pá virada, e, tomando conhecimento da celebração religiosa, caiu na gargalhada desconcertando os amigos que mandaram rezar a missa. Foi um deus nos acuda para conter a indisposição de alguns com a irreverência do padre.

Decaído da política e aposentado do magistério público, rapidamente perdeu as referências na Igreja e dele retiraram o altar dos Remédios para pregação. Abalado, em profundo abatimento, parece que sem permissão de qualquer autoridade eclesiástica, passou a celebrar, aos domingos, na pequena Capela do Cemitério de São José para a qual ainda acorriam algumas poucas pessoas interessadas em ouvi-lo.

Sem conseguir a mesma plateia que costumava ter nos tempos áureos de seus inflamados discursos sacros, pronta para o encanto de suas pregações, um dia, inopinadamente, zangou-se e quase expulsou as poucas senhoras que o ouviam. Seu nome ficou gravado como brilhante orador sacro e político, e professor dos melhores: José Félix da Cruz Dácia.

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