Manaus, 29 de março de 2024

O Futuro das Lembranças

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*Giulia Vidale 

Exames rastreiam o Alzheimer anos antes dos primeiros sinais, mas levantam uma questão: o que fazer com um diagnóstico tão precoce de uma doença sem cura? 

EM 2010, aos 86 anos, o aposentado Leone Gagliardi, italiano radicado em São Paulo, chegou em casa com o carro riscado. Meses depois, esqueceu de pagar um boleto bancário. Certo dia, esqueceu o caminho de volta da casa do sobrinho, trajeto que fazia habitualmente. Eram os primeiros sintomas de Alzheimer. O diagnóstico foi confirmado logo após as manifestações iniciais. Proscreveram-lhe um inibidor de acetilcolinesterase, a enzima que, no limite, destrói os neurotransmissores vitais para a memória e o aprendizado. Deu-se, então, uma freada no avanço da doença. Gagliardi está com 94 anos. Anda e se alimenta sozinho. Em seu escritório coberto de livros, mapas e fotos, ele lê, reconhece amigos e familiares. O caso de Gagliardi representa o máximo que a medicina hoje consegue oferecer a um paciente de Alzheimer: diagnóstico aos primeiros sinais. Isso, no entanto, está começando a mudar.

Nos últimos cinco anos, universidades e instituições públicas do mundo todo têm investido no desenvolvimento de exames capazes de rastrear a doença anos antes do aparecimento dos primeiros sintomas (veja o quadro abaixo). Os exames preditivos levantam as questões mais tormentosas da medicina sob o ponto de vista ético. Permitem que homens e mulheres com vida absolutamente normal saibam que, dali a alguns anos, sofrerão de uma doença incurável e incapacitante. O que fazer diante dessa revelação? E se esse resultado lá na frente se mostrar falho? “Os novos testes de diagnóstico para o Alzheimer serão bem-vindos, mas é preciso cautela”, diz Tânia Ferraz Alves, psiquiatra do Projeto Terceira Idade do Instituto de Psiquiatria da USP.

Um trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) mostrou que a maioria das pessoas não está apta a lidar com esse tipo de informação. De cada dez pacientes com histórico familiar de doenças genéticas incuráveis, sete demonstram não ter estrutura psicológica para suportar o eventual baque de um resultado positivo. As decisões são as mais inesperadas. Tome-se como exemplo o que ocorre com um tipo de câncer de mama e ovário agressivo e letal associado à mutação do gene BRCA. O defeito é detectado com testes preditivos já consolidados na medicina e a única abordagem terapêutica é a retirada profilática das mamas e dos ovários. Foi o que fez a atriz americana Angelina Jolie, em 2013, ao saber que era portadora da mutação. Dados estatísticos assinalam, no entanto, que apenas metade das mulheres com o problema faz tal escolha, mesmo sabendo que é praticamente certo que sofrerão a doença e morrerão em consequência dela.

Mais de um século depois da descoberta do Alzheimer, ainda não se conhecem com precisão suas causas. “Sabemos que as placas e emaranhados de proteínas começam a se depositar no cérebro décadas antes que os primeiros sintomas neurológicos apareçam, mas inúmeros outros mecanismos estão envolvidos”, diz o psiquiatra Wagner Gattaz, presidente do Instituto de Psiquiatria da USP. Quando os sintomas se manifestam, como no caso de Gagliardi, centenas de neurônios já morreram e conexões foram perdidas. “O dano cerebral é irreversível”, diz Paulo Bertolucci, chefe do setor de neurologia do comportamento da Unifesp. O cenário só mudará quando, além de se detectar a doença em fase realmente inicial, houver um medicamento ou tratamento eficaz para combatê-la.

A busca por um remédio tem sido intensa, mas, até agora, vã. Hoje, existem no mercado só quatro medicamentos contra o Alzheimer, que são capazes apenas de retardar o avanço da doença. Das 244 drogas testadas entre 2002 e 2012, somente uma foi aprovada. A derrota mais recente ocorreu há um mês, com a interrupção dos estudos de uma substância que simbolizava uma grande esperança – o crenezumabe. Ela agiria em uma das bases da doença, que é o acúmulo da proteína beta-amiloide no cérebro. Descobriu-se que o crenezumabe não funcionava, pois não consegue reduzir o declínio cognitivo. Na luta contra o Alzheimer os tropeços têm sido comuns.

Principal causa de demência em indivíduos com mais de 60 anos, o Alzheimer afeta 4S milhões de pessoas em todo o mundo, 1,2 milhão delas no Brasil. Poucos males são tão cruéis ao solapar as próprias lembranças. “Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Sem ela, não somos nada”, escreveu o cineasta espanhol Luís Buñuel (1900-1983) na autobiografia Meu Último Suspiro, sobre o Alzheimer que acometeu sua mãe. Enquanto não se encontra um modo eficiente de combatê-lo, resta uma possibilidade real de ataque à doença. Diz Roberto Miranda, geriatra do Instituto Longevità: “Mudanças no estilo de vida, como a prática de exercícios regulares e uma alimentação balanceada, podem reduzir o risco da enfermidade” (veja o quadro acima).

*Jornalista. Matéria na Revista Veja nº 2623, de 27/02/2019.

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