Manaus, 16 de abril de 2024

O centenário da Academia

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Esta revista, editada dois anos após a sua criação, constitui documento precioso sobre o funcionamento da Academia, fundada num momento de mudanças na vida social do Amazonas. A regra são as agitações culturais florescerem na euforia do desenvolvimento econômico. Mas o contrário se deu no Amazonas que viveu esse fato no declínio da economia da borracha, início do século XX, por volta de 1910. Nesse tempo observou-se uma significativa movimentação literária e dos estudos sociais, consolidada na década seguinte com a criação da Universidade de Manaus em 1909, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, em 1917, e da Academia em 1918.

Foram gestos afirmativos de uma resposta da intelectualidade amazonense ao declínio da economia, provocada pela desvalorização da borracha vegetal, o produto nativo mais valorizado na atividade extrativista da Amazônia. O episódio constitui um capítulo à parte na história do desenvolvimento regional. A descoberta e a exploração da hévea, sua industrialização e uso em vários segmentos da tecnologia, e seu cultivo em outras regiões do planeta, marcaram profundamente o comportamento e as atitudes do homem regional. Nos seus momentos de maior entusiasmo a economia da borracha proporcionou a melhoria das instalações dos centros urbanos da Amazônia, com destaque para as cidades de Manaus e de Belém.

Toynbee (Arnold – 1889-1975), em obra famosa, concebeu a teoria de que as civilizações se desenvolvem nos contextos de desafios e respostas. No Amazonas, dizemos nós, a resposta decorreu da ação dos intelectuais e homens de pensamento ao repto configurado no declínio da economia da borracha. A criação dessas três instituições constitui uma forma de reafirmação da presença do homem no interior da Amazônia, sem embargo da questão econômica. No inventário desses homens, observa-se que eles se repetiam na lista dos animadores dos referidos empreendimentos, dirigidos aos afazeres da educação e da cultura. Na maior parte eram sempre os mesmos.

Comemora-se agora, em 2018, o centenário da Academia. No domínio das letras é a instituição cultural mais representativa do período. Desde o início. Reuniu o que havia de melhor nas atividades intelectuais na literatura. Reuniu os escritores amazonenses e os que para cá vieram atraídos pelo fascínio dos cantos da Iara do rio Negro, seduzidos pelas perspectivas de crescimento provocado pela economia da borracha e ao exercício de atividades públicas como a magistratura.

O ambiente artístico do Amazonas de então era dominado pela estética parnasiano-simbolista, bem representada por Péricles Moraes (1882-1956), no ensaio e Álvaro Maia (1893-1969) e Jonas da Silva (1880-1947), na poesia. Mestre Péricles era inebriado pela literatura francesa, circunstância que se registra com destaque em sua obra de estreia, “Figuras & Sensações” (1923), publicada em plena maturidade dos 40 anos do autor. Fez duas viagens a Paris e lá se relacionou com figuras de realce dos círculos literários de então, como o crítico e ensaísta Remy de Gourmont (1858-1915), um dos mais conceituados divulgadores do simbolismo europeu, com quem manteve correspondência de volta a Manaus. Péricles Moraes está entre os maiores prosadores simbolistas brasileiros. Seu estilo é dotado de musicalidade verbal e visão idealista da vida, fatores dominantes nessa estética. O piauiense Jonas da Silva também o era, agora na poesia. Fez renome nacional ao aparecer em antologias que arrolam os poetas brasileiros representativos do simbolismo, mais lembrado pelos sonetos do coração e de Santa Tereza.

Álvaro Maia é a figura mais representativa da poesia entre os fundadores do Silogeu amazonense. Sua influência no ambiente sociocultural se acentua desde à formulação política no entendimento do amazônida. Com a palavra chave “caboclitude” o poeta orientou a sua ação na militância partidária democrática e na literatura, na prosa e na poesia. “Banco de canoa” (1063) é um exemplo da boa prosa e, em “Sobre as águas barrentas”, Álvaro Maia nos oferece um poema exemplar na técnica e no conteúdo lírico, retrançado de motivos amazonenses.

Mas o mestre Péricles não se isolou de todo quanto às questões da literatura comprometida com os temas amazônicos. Escreveu um ensaio que intitulou de “Os intérpretes da Amazônia”, enfeixado em “Legendas & águas-fortes”(1935), em que promove o levantamento do cultivo das letras na região desde as origens até os seus contemporâneos. Mestre Péricles presidiu a Academia por vários anos e nela exerceu o tirocínio de um autêntico moderador. Ele é quem indicava os titulares às vagas abertas no preenchimento dos quadros do Silogeu. Ao presidir as solenidades de recepção a novos acadêmicos, o discurso de abertura ele chamava de “palavras sacramentais”. Era como se fosse um sacerdote a presidir um ritual religioso. Era uma personalidade dominadora e que marcou a imagem da instituição como organismo fechado e hermético às novas manifestações artísticas.

Mas não era tanto assim. No centenário é a hora de se fazer justiça ao espírito que sempre orientou a Academia. Nos anos de 1918, data de sua fundação, já se observava, em determinados círculos literários do país, a inquietação por algo novo que viesse para revelar a visão de mundo e o comportamento do homem contemporâneo. Observava-se verdadeira exaustão das linhas simbolista-parnasianas exercitadas há mais de três décadas na literatura e na arte brasileira. Anunciava-se já o movimento modernista inaugurado com a Semana de Arte Moderna, realizada em 1922 em São Paulo. Entre tantas de suas mudanças a mais visível era o repúdio às formas fixas do verso medido em favor do verso livre. Mais uma vez é preciso fazer justiça à orientação implantada na Academia por seus fundadores. Fato que se revela nesta revista, na prática do verso livre, anúncio do modernismo, pelo menos em duas de suas peças, os poemas “Laranjeira”, às páginas 26/29, de Genésio Cavalcante, e “A França”, páginas 50/52, de TH. VAZ, pseudônimo de Taumaturgo Sotero Vaz.

Em 1935, aos 19 anos, Violeta Branca lançava “Ritmos de inquieta alegria”, a primeira obra inteiramente concebida e realizada no Amazonas, seguindo as correntes estéticas do modernismo, o verso livre e a liberdade emocional. Que fez a Academia? Trouxe essa mulher notável para os seus quadros, quando contava apenas 22 anos de idade, sem preconceitos e no auge do espírito machista dominante na sociedade da época. Segundo se tem notícia, Violeta Branca foi a primeira mulher a ingressar numa Academia, em todos os tempos e em todo o planeta, mercê dos méritos de sua bela poesia e da visão intelectual dos membros do Silogeu.

Mas se manteve renitente na sociedade o conceito de ser a Academia uma instituição conservadora. Em verdade jamais foi conservadora, nem como vimos ontem, nem como a vemos hoje. A partir de 1969 passa a receber nos seus quadros os jovens do Movimento Madrugada. Não era um convívio intelectual confortável o que se via na mídia quanto ao relacionamento entre os jovens madrugadores e os velhos da Academia. Quase chegavam às vias de fato durante polêmicas acirradas sobre questões estéticas, o passadismo e o modernismo, a juventude e a velharia. Há um episódio até hilariante acontecido ainda sob esse tempo de nuvens negras nos horizontes intelectuais de então, que vale a pena referir neste posfácio.

Mestre Péricles aniversariava. Corria a fama de ser ele um apreciador da boa mesa e do bom garfo. Valorizava os hábitos alimentares da terra e tomava água em cuia pitinga. Era bonachão. Os madrugadores foram informados de que havia uns comes e bebes na casa do Presidente da Academia, função exercida por ele como se fosse vitalícia. Resolveram participar da festa. Desceram da antiga praça da polícia, debaixo da árvore onde se reuniam e se dirigiram a uma casa construída no estilo dos antigos mestres de obra portugueses, situada na Rua Henrique Martins, onde residia o grande ensaísta. Ao chegar lá se anunciaram e, consultado se poderiam entrar aqueles jovens não convidados à festa, o aniversariante cordialmente autorizou com toda a alegria que entrassem. Lá pelas tantas, já eufóricos após alguns tragos servidos na festa, os madrugadores começaram a recitar poesia, alguns até em francês, em que não faltaram, entre outros, poemas de Baudelaire, Rimbaud e Verlaine. Mestre Péricles que cultivava a língua de Voltaire até por ser professor de francês, cativado pelos jovens madrugadores na noite do seu aniversário, rendeu-se de vez ao entusiasmo e confessou aos seus agora jovens amigos: pensei que vocês quisessem me matar.

Caia ainda sobre a Academia o senão de conservadora, por pequenos sestros partidos de um ou outro de seus componentes mais dissimulados. Certa feita, enquanto se realizava sessão administrativa da Casa, registrou-se uma passagem que bem comprova ser tal questão uma atitude isolada. As reuniões, em regra, ocorriam aos sábados de tarde. Nesse tempo ainda não era corrente o uso do ar-condicionado e, o melhor que havia para abrandar o calor do meio ambiente amazônico nos salões mais requintados da cidade, eram os românticos ventiladores de teto. Um dos novos Acadêmicos decidiu um dia comparecer, ferindo o costume arraigado ao longo do tempo, a uma dessas sessões de paletó, mas sem gravata ao estilo “blazer”. Um dos confrades mais antigos aproximou-se do noviço e indagou: quando é o teu aniversário. E acrescentou, antes que o jovem acadêmico respondesse aquela pergunta, feita de supetão: é que eu quero te dar uma gravata de presente. O novato assimilou a mensagem e nunca mais compareceu às sessões administrativas sem aquele dispensável componente do vestuário na época. Isso porque, nas sessões solenes a exigência estatutária é o traje a rigor, ainda hoje. Mas nas sessões administrativas já se permite a manga de camisa, diga-se de relance, traje muito mais apropriado ao clima tropical da cidade de Manaus.

Cada vez mais nestes cem anos, a Academia vem aproximando-se da sociedade. Tem aberto as portas a eventos intelectuais significativos como a realização de seminários de estudo de temas literários e saraus artísticos envolvendo a manifestação de outros gêneros, além da literatura, no âmbito da música e das artes plásticas. Tem-se aproximado do poder público, sem nenhum comprometimento político desta ou daquela facção partidária. Afinal a letra estatutária impede que a Casa abrigue qualquer reunião de cunho político partidário ou religioso. Mas é o adjutório estatal que a tem sustentado ao longo do tempo. A sua sede é produto de uma doação do Estado, que a mantém e a conserva ao bom funcionamento dos seus serviços. O município de Manaus acolheu-a como órgão consultivo no que se refere às questões oficiais da língua portuguesa e do equipamento das bibliotecas municipais com a produção intelectual de seus membros. A sua revista, desde este primeiro número e nas edições seguintes da primeira fase, era editada pela Imprensa Oficial por força de um instrumento legal.

A Academia é, por fim, e mais se afirma em seu centenário, uma instituição necessária e imprescindível à valorização das letras nacionais na Amazônia, patrimônio intelectual do Estado e do povo, circunstância que se observa neste primeiro número de sua revista.

**Trabalho realizado para servir de posfácio a uma nova edição do primeiro número da Revista da Academia.

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2 respostas

  1. Uma abordagem acima de tudo conceitual e didática na qual enfatiza o papel e as contribuições da Academia Amazonense de Letras (AAL) ao processo de formação cultural de nosso Estado desde sua fundação há quase um século. Parabenizo com entusiasmo ao valoroso companheiro de ideais, ao poeta, ao autor de Barro Verde, ao acadêmico Elson Farias por esse importante e oportuno trabalho publicado com destaque no Blog do fraterno amigo Francisco Gomes. Que todos possamos, por seu intermédio, melhor entender a missão de nossa AAL.

  2. Nas palavras do próprio Elson Farias, ao finalizar seu artigo, “a Academia é, por fim, e mais se afirma em seu centenário, uma instituição necessária e imprescindível à valorização das letras nacionais na Amazônia, patrimônio intelectual do Estado e do povo”.

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