Manaus, 19 de abril de 2024

Nós e o rio

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Quem nasce em Manaus não pode negar sua ligação com o Rio Negro, mesmo que queira, e essa é uma relação complicada da cidade.

Vou tocar aspectos da questão do Rio Negro no contexto histórico do Brasil, na história da América Latina. Ao longo do processo de ocupação, poucos foram os rios que testemunharam o que aconteceu no Rio Negro. A maioria dos rios testemunhou a derrota dos povos que estavam aqui na América, os povos americanos. Testemunhou os horrores que essas etnias, essas culturas, enfrentaram com a chegada dos europeus. Testemunhou, em geral, o extermínio. O Rio Negro testemunhou tudo isso, mas estranhamente também testemunhou a resistência e a vitória. Uma das poucas vitórias que os povos originários da América conquistaram está configurada aqui no Vale do Rio Negro.

Se olharmos o Rio Amazonas, por exemplo, vamos perceber que é um rio que tem uma história muito mais pobre que a do Rio Negro, do ponto de vista geopolítico, do processo de formação da sociedade nacional brasileira. O Rio Amazonas foi, digamos, esterilizado logo no primeiro momento. As grandes civilizações que chegaram aqui no Rio Amazonas foram imediatamente pulverizadas pelo contato com os europeus. Já o Rio Negro teve essa história tão distinta, e acabou se transformando na única província indígena não-oficial do Brasil, provavelmente da América do Sul. Consultando a bibliografia que existe sobre o choque que ocorreu a partir de Colombo, vemos que alguns historiadores americanos classificam isso como holocausto. Há até um livro que se chama “Holocausto americano”, no qual o autor faz um levantamento de todas as atrocidades de ocorreram no processo. Há estudos sobre como as populações foram reduzidas por diversos fatores.

Tudo isso também ocorreu no Rio Negro, mas algo muito distinto foi ocorrendo, no final do século XVIII, até meados do século XIX. Os relatos que temos do Rio Negro é de uma terra completamente arrasada e sem nenhuma possibilidade de futuro. Mesmo nós, que somos militantes de apoio à causa dos povos indígenas, já militantes um tanto velhos, quando olhávamos a situação do Rio Negro, há vinte anos, também tínhamos poucas esperanças de que se lograsse alguma consequência positiva para a sobrevivência dessas culturas. Apesar de todos os pesares, o Rio Negro conseguiu criar uma agenda própria, e conseguiu através da organização de suas populações, de suas etnias, organizar um protocolo para se relacionar com a sociedade nacional abrangente. Não conheço nenhuma outra área de extensa e intensa população indígena na América do Sul que tenha capacidade de relacionamento com a sociedade nacional, especialmente na área norte-amazonas, no Alto Rio Negro. Não quero dizer que não, tenha mais problemas, ao contrário, os problemas cresceram também em ordem geométrica na medida em que esta sociedade foi se organizando. Há um fenômeno extraordinário ocorrendo no Rio Negro, não é? Que é o fenômeno das estratégias que esses povos inventaram para resistir. Em nenhum lugar do mundo as línguas orais estão se transformando em línguas escritas como no Rio Negro. Em nenhum outro lugar do mundo vemos surgir uma literatura, uma série de trabalhos escritos que vão provocando verdadeiros terremotos na antropologia cultural. Todo um conjunto de obras de renomados antropólogos internacionais em relação ao trabalho que fizeram sobre o Mundo, a Cultura e o Universo Mítico do Alto Rio Negro vai ter que ser revista. Hoje nós temos mais de uma interpretação para a questão da cosmologia do Rio Negro criada por seus próprios inventores, os povos do grande norte amazônico.

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