Manaus, 19 de abril de 2024

Memórias da literatura

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Em 2004 o TESC encenou “Hamlet”, de Shakespeare. Para todos foi uma experiência inesquecível. Ninguém mergulha no mundo do bardo e emerge impune. Um dos maiores desafios foi o texto, pois o grupo leu diversas traduções insatisfatórias. Não que fossem sem qualidades, ao contrário, eram obras de grandes dramaturgos, mas algumas se mostravam literárias demais, ou cariocas ou paulistas demais.

Não que desejássemos fazer uma “versão” amazonense, queríamos era conseguir diálogos num vernáculo que fosse inteligível hoje. Afinal de contas, mesmo para os falantes do inglês, muitos dos termos shakespearianos são obsoletos.

Isto sem falar, as diversas referências a personalidades da época e fatos políticos e sociais do período, hoje completamente esquecidos. Na minha tradução, busquei analogias com nossa própria experiência, corno o trecho abaixo. “Hamlet – O ator que representa o rei será bem-vindo; Sua Majestade receberá as minhas homenagens; o cavaleiro andante usará a espada e o escudo; o apaixonado não suspirará em vão; o comediante terminará em paz a sua parte; o palhaço fará rir até mesmo os que forem asmáticos e as damas confessarão livremente os seus anseies, a fim de evitar que o verso saia capenga. Que grupo de atores é esse?

Rosencrantz – É aquele que voltou a cena depois de 30 anos, que tanto era do vosso agrado.

Hamlet –  E por que voltaram à cena? Seria mais negócio criar um grupo novo. Rosencrantz  – Acho que preferiram voltar no tempo, a enfrentar as duras inovações.

Hemlet – E ainda conservam a qualidade do passado? Ainda são tão aplaudidos?

Rosencrantz – Nem tanto, meu senhor. Estão começando do zero, mas procuram agradar. O problema é que agora os tempos são outros, e tudo o que prolifera cena são as reses, os bezerros, os terneiros, os garrotes, os bois e algumas raras vacas, celebradas em toadas vociferadas em falsete e rima facil, para urna massa de infantes que saracoteiam como possessos, num processo de saturação tal que praticamente pôs a termo todas as outras artes.

Hamlet – Como! E a pecuária na ribalta? E quem são os marchantes que os possa transformar em bifes? E esta carne, será aprovada pela fiscalização sanitária? E as rimas, poderão ser melhoradas? Nem a Holanda, onde o gado à sombra dos moinhos pasta em bucólicos campos de alfafa, ou mesmo nas índias, onde as vacas são sagradas, poderiam ter imaginado semelhante desatino. Não duvido que um de seus arautos cultos como os são não acabe em alto posto cultural.

Rosencrantz – A verdade é que já se experimentou tal desgosto. O mal estar recaiu tanto para os que deploraram o acontecido, como também para o próprio favorecido, que se viu na desagradável função de ler documentos e firmá-los, pois não era familiar nem com uma coisa nem com outra. Oh! Poetastro da ilha! Estes são os tempos em que nenhuma companhia de teatro ousa cobrar ingresso.

Hamlet – Será possível?

Guildenstern – Oh! Hoje se dá mais valor aos quadris que ao cérebro!

Hamlet – E os ruminantes levaram a melhor?

Rosencrantz – Acertaste meu senhor. Tornaram-se tão absolutos que a inteligência ganhou altas taxas de colesterol. Acaba tendo um enfarte do miocárdio.

Hamlet – Não pensem que tudo isto é estranho, afinal meu tio não é o rei da Dinamarca? Aqueles que o ridicularizavam, quando meu pai era vivo, pagam hoje pequenas fortunas para posar ao lado dele. Há algo de sobrenatural no regional, que a mais alta filosofia se nega a estudar.” Posso garantir que as plateias entendiam perfeitamente …

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