Manaus, 29 de março de 2024

Mário de Andrade em Itacoatiara (03/06/1927)

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Poeta Mário de Andrade fotografado na Amazônia, 1927.
Do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Em fevereiro deste ano completaram-se 70 anos da morte do ensaísta, poeta, musicólogo e crítico de arte Mário de Andrade (1893-1945). Nascido e falecido em São Paulo, este grande intelectual teve papel importante na implantação do modernismo no Brasil. Estreou com o livro de poemas “Paulicéia desvairada”, e o romance “Macunaíma” foi sua criação máxima, levada para o cinema. Deixou mais de trinta livros publicados, sendo dez deles in memorian.

Mário de Andrade visitou a Amazônia em 1927 e, como não podia deixar de ser, também perambulou por Itacoatiara. Julgamos importante registrar o simbólico acontecimento, que marca com letras de ouro a história e a cultura de nossa terra. Em contraponto, à época, a situação do Estado do Amazonas era de insolvência financeira e total estagnação econômica. No pressuposto de pacificar a política e sanear a administração pública, desde 1924 o governo amazonense esteve sob o comando de interventores militares.

No ano anterior (1926), havia assumido a Prefeitura de Itacoatiara o judeu paraense Isaac José Perez – o primeiro a receber o título de prefeito (antes dele, atribuía-se a administração aos superintendentes municipais). No exercício da Comarca estava o juiz de Direito Carlos Pereira da Silva; na presidência da Câmara, o vereador Antônio de Araújo Costa (antes era intendente); e na vigararia da Paróquia o monsenhor padre Joaquim Pereira. A população da cidade algarismava-se em 7.000 habitantes. O perímetro urbano ia desde o litoral – antiga Rua das Gaivotas (ao sul) à Rua N. S. do Rosário (ao norte); e da Avenida Ocidental do Jauari – atual Rua Manaus (a leste) à Avenida 15 de Novembro (a oeste). Havia somente dois bairros: Colônia e Jauari.

Mário de Andrade vinha da Semana de Arte Moderna de 1922, quando São Paulo firmara-se como locomotiva do País retirando do Rio de Janeiro o título de centro da cultura e das artes.

Na sua viagem etnográfica à Amazônia, acompanhavam-no asocialite e rainha do café Olívia Guedes Penteado, a sobrinha Margarida Guedes Nogueira, a filha da pintora Tarsila do Amaral (1886-1973), Maria Dulce do Amaral Pinto, e uma serviçal. Embarcados no navio Dom Pedro I, do Lóide Brasileiro, deixam o Rio de Janeiro a 13 de maio de 1927 e alcançam Belém no dia 19. De Belém a Iquitos, no Peru, e daí a Manaus, viajam no vaticano São Salvador, da Amazon River.  De Manaus a Porto Velho, será pelo vapor Vitória, da mesma companhia. Em Porto Velho experimentam um passeio na ferrovia Madeira-Mamoré. De volta a Belém, ainda vão ao Marajó. A cada porto em que as embarcações encostam para carregar lenha ou cortar pasto aos bois, os caravaneiros aproveitam para conhecer  os lugares e tratar com as pessoas – e o poeta Mário de Andrade, além de fotografar, tudo anotava.

Quando viajando, recolhia-se à cabine por longas horas para escrever o diário, cartas aos amigos que ficaram em São Paulo e outras anotações-fruto de sua criatividade. Dessas anotações nasceu o livro “O turista aprendiz” (diário e notas etnográficas) e foi adensado o trabalho ficcional “Macunaíma” (‘um herói sem nenhum caráter nem moral nem psicológico’), cuja “principal inspiração vem do etnólogo alemão Koch-Grümberg [1872-1924] na região do Monte Roraima, que fornece o tema central, a que se agregam, como temas secundários, elementos de outras fontes”. (Cf. Mário Cavalcanti Proença, ‘Roteiro de Macunaíma’, Rio de Janeiro, 1978).

A viagem de Mário de Andrade contribuiu para destacar a Amazônia em diversos campos. No etnológico: procura popularizar e valorizar o conhecimento sobre os diferentes povos indígenas, especialmente em relação à mitologia; no folclórico: destaca as festas populares – reisados, bois-bumbás, cirandas; no musical: a riqueza da música negra e sua influência na cultura local (exemplo: a pajelança); no literário: Macunaíma, que é um dos esteios do modernismo, insere a nossa região nesse importante, renovador movimento que despertou o Brasil; e no fotográfico: resultou em acervo de fotografias de época (cerca de 500 imagens), em preto e branco, envolvendo paisagem, coisas e tipos humanos – neste último caso, destacamos duas fotos: (1) relativa a um improvisado quiosque coberto por uma árvore, na orla da antiga e acanhada Itacoatiara e (2) ao encontro dos rios Madeira e Mataurá, onde há 332 anos começou a história de nossa cidade (constam do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP) – ambas mostradas agora neste artigo.

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Quiosque cuja cobertura é árvore, na orla da cidade de Itacoatiara, 1927.
Fotografia tirada pelo poeta Mário de Andrade. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

“Macunaína” é um livro que propõe múltiplas leituras. Na volta a São Paulo, Mário passou-o a limpo, inserindo nele notas sobre costumes, folclore musical e observações pessoais coletados na viagem. É uma obra graciosa e criativa, inova na linguagem e na temática. Segundo o próprio autor, em carta escrita da Amazônia a Carlos Drummond de Andrade, “A língua que escrevo, as ilusões que prezo, os modernismos que faço são para o Brasil. E isso nem sei se tem mérito porque me dá felicidade, que é a minha razão de ser da vida (…) A minha vaidade hoje é de ser transitório. Estraçalho a minha obra. Escrevo língua imbecil, penso ingênuo, só pra chamar a atenção dos mais fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso ainda que é o Brasil. Os gênios nacionais não são de geração espontânea. Eles nascem porque um amontoado de sacrifícios humanos anteriores lhes preparou a altitude necessária de onde podem descortinar e revelar uma nação”. (Cf. Mário de Andrade, “O turista aprendiz”, São Paulo, 1976).

Tanto na ficção, como no diário de Mário de Andrade, há assuntos que mostram a conversa entre os diversos gêneros literários. Refiro-me a um trecho que, embora escrito em Óbidos, me faz lembrar uma tradição inerente a Itacoatiara. Vejamos: “Passava uma piracema de jaraquis. Macunaíma agarrou pescando e distraído, quando viu estava em Óbidos, a montaria cheinha de peixes frescos. Mas o herói foi obrigado a atirar tudo fora porque em Óbidos ‘quem come jaraqui fica aqui’, falam, e ele tinha que voltar para Urariquera” – um rio ao norte de Roraima. (Cf. o autor em “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, São Paulo, 1976). Tal narrativa também aparece em o “Turista aprendiz”, nestes termos: “Passava uma piracema de jaraquis, a água estava pipocando e os pescadores numa trabalheira mãe. ‘Quem come jaraqui, fica aqui’, é o refrão local”. (Cf. Mário de Andrade, obra cit.1976).

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Encontro do Rio Mataurá (à esquerda) com o Rio Madeira (à direita). Fotografia de 1927, tirada pelo poeta Mário de Andrade.
Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros – Universidade de São Paulo.

O tema acima abordado nos fala muito ao coração. Sim, faz lembrar a Itacoatiara jeitosa, irreverente. Desde muito, à chegada de qualquer visitante à velha Serpa, é comum afirmar-se: “Se você comeu jaraqui e bebeu a água do Jauari, jamais sairá daqui!” O complemento “beber água do Jauari” à menção de Mário de Andrade, nos remete ao líquido antigamente puro e cristalino escoado pelo lago Jauarí, e não ao que é atualmente exibido em estado de poluição extrema, totalmente fétido, dando causa a doenças e mortandades – situação lamentável que depõe contra a cidade, decorrente do descaso e da irresponsabilidade perpetrados pelas últimas administrações populistas imperantes em nosso Município. Na realidade, o assunto reporta à época (segunda metade do século passado) em que a distribuição d’água aos moradores, um serviço atribuído ao SESP – Serviço Especial de Saúde Pública era feita através dos poços de abastecimento abertos em terrenos situados ao redor do tradicional bairro homônimo. Aliás, faço questão de inserir, aqui, um pequeno trecho do livro de minha autoria, “As pedras do Rosário”, ainda inédito (sairá brevemente!), reportando a piracema de peixes das pedras do Jauarí:

A riqueza ictiológica resiste ao impacto do aterramento do lago Jauarí, das madeireiras próximas, do lixo e dos esgotos lançados no Rio Amazonas. Por inspiração de Deus, as pedras de seu leito estimulam a formação de remansos para que jaraquis, pacus, branquinhas, aracus, sardinhas e outras variedades continuem imperando sob a grande corrente fluvial. Na fartura – à sombra dos botequins, defronte às residências e principalmente em cima das pedras que ali existem – os pic-nics se sucedem. Depois de retirados d’água, tratados e preparados fritos, assados ou em caldeirada, os peixes são devorados por trabalhadores, bêbados e visitantes que por ali passam. Na visão popular, “quem prova do jaraqui, pescado no Jauari, volta sempre ali”. 

Efetivamente, os textos de Mário de Andrade, produzidos a partir de sua viagem à Amazônia, provam que ele se apresenta como um instigador, um faiscador de brasilidades, quando assim se manifesta: “Faz-se necessário e cada vez mais que conheçamos o Brasil. Que sobretudo conheçamos a gente do Brasil”. E sobre isso há referência do escritor Àlvaro Cabrini, nestes termos: “E então se recorremos aos livros dos que colheram as tradições orais, e os costumes da nossa gente, desespera a falta de valor científico dessas colheitas. São descrições imperfeitíssimas, incompletas (…) Além de ser pouco em comparação com a riqueza absurda dos nossos costumes e do nosso folclore, além de ser pouco, vale pouco”. (Cf. esse autor, em “Cachimbo e maracá”, São Paulo, 1993).

Homem “altamente instruído e cultivado”, mas pouco experiente em viagens (além de São Paulo, conhecia somente o Rio de Janeiro e uma parte de Minas Gerais), depois da Amazônia Mário faria apenas mais uma viagem longa, ao Nordeste – queria aprender mais sobre o Brasil. Seus relatos de viagem era parte importante do projeto modernista, permitindo tornar o Brasil mais familiar aos brasileiros. Na verdade, ele foi o modernista paulista que mais se ‘nacionalizou’ – “Macunaíma” e outros textos de sua autoria condensam o ideal utópico de unir o País, aproximando regiões, culturas e diferenças.

“Êxtase”, “volúpia” e “contemplação” são os adjetivos mais utilizados nas missivas enviadas por Mário de Andrade aos seus amigos intelectuais sulistas. No dia 3 de junho de 1927, quando o Dom Pedro I já se aproximava de Itacoatiara – era “a manhã mais linda do Amazonas” – escreveu ao poeta Manuel Bandeira (1886-1968) dizendo das experiências de sua viagem, do que passou a sentir “por esse mundo de águas”. Na carta se diz extasiado: “Me entreguei a uma volúpia que nunca possuí, à contemplação destas coisas, e não tenho por isso o mínimo controle sobre mim mesmo. A inteligência não há meios de reagir nem aquele poucadinho necessário para realizar em dados ou em bases de consciência o que os sentidos vão recebendo. Amanhã chegarei a Manaus e não sei que mais coisas bonitas enxergarei por este mundo de águas”. (Cf. correspondência citada).

Antes, ao ultrapassar a cidade de Óbidos – segundo revelou em seu diário – Itacoatiara apareceria em sonho; “não existia no mapa, mas encenava parodicamente a cidade da floresta”:

É a mais linda cidade do mundo, só vendo. Tem setecentos palácios triangulares feitos com um granito muito macio e felpudo, com uma porta só de mármore vermelho. As ruas são todas líquidas, e o modo de condução habitual é o peixe boi e, para as mulheres, o boto. Enxerguei logo um bando de moças lindíssimas, de encarnado, montadas em boto que as conduziam rapidamente para os palácios, onde elas me convidavam para entrar em salas frias, com redes de ouro e prata pra descansar ondulando. Era uma rede só e nós dois caímos nela com facilidade. Amávamos. Depois íamos visitar os monumentos públicos, onde tornávamos a amar porque todos os burocratas estavam ocupados, nem olhavam. As ruas não se chamavam com nome de ninguém, não. Tinha a rua do Meu Bem, a rua das Malvadas, a rua Rainha do Café, a rua das Meninas, a rua do Perfil Duro, a rua do Carnaval, a rua Contra o Apostolado da Oração. (Cf. anotação do dia 3/06/1927).

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Poeta Mário de Andrade na rede, lendo. Ponta-seca de Lasar Segall, 1929. Coleção do Museu Lasar Segall, São Paulo.

O professor da USP, José Tavares Correia de Lira, no artigo acadêmico “Naufrágio e galanteio”, publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais, volume 20, nº 57, fevereiro de 2005, páginas 143/210, comenta a respeito:

A cena fantástica, ao lado de sua componente utópica, revela a oscilação satírica entre o modelo oriental da cidade invisível, com seus palácios revestidos de granito e mármore, e a diferença local, a rede, as ruas cobertas de água de nomes bem nortistas em alusão ao amor, ao pecado e às companheiras de viagem. A paródia onírica ressoava e amplificava o disparate da cidade europeia com a extravagante arquitetura de estilo em plena floresta. O macio, o felpudo, o vermelho, o líquido, o peixe-boi, o boto e as mulheres, suas parceiras, com a “elegância discreta embora desenvolta com que elas sabem ficar nuas, que diferença das mulheres civilizadas” (idem, 4/06/1927), faziam da cidade o espaço do erotismo. Além delas, apenas o burocrata indiferente e o estrangeiro, que, enamorado pelas nativas, se deixava levar a toda parte em prol do amor. Este urbanismo surrealista de Mário de Andrade levava ao extremo as impressões paradisíacas de suas Veneza e Cairos amazônicos, antepunha à imagem séria e ascética do roteiro turístico, uma cultura popular, carnal, que promovia a liberação do riso, a vitória do sexo sobre a oficialidade – Uraricoera  vivida  sem recalques

E, para concluir, o professor Tavares prossegue:

Experiências de cidades que ao serem “desgeograficadas” macunaimicamente criam novas geografias, mapas legendários, livres de contingências regionais, embrulhados de propósito, mas também livres das convenções e dos modelos de exportação, capazes de criar na pátria expatriada um “itinerário fantástico, uma espécie de utopia geográfica, que corrige o grande isolamento em que os brasileiros vivem, subtraindo-o pelo elo fraterno da vizinhança” [G. de M.. e Souza, 1979, pp. 38-39]. Daí talvez a eleição das selvas, o resumo ao mito da Cidade Afundada (O turista aprendiz, 4/07/1927) – Cf. autor e trabalho citados, São Paulo, 2005.

Os caravaneiros liderados por Mário de Andrade desembarcaram em Itacoatiara na manhã do dia 3 de junho. Estiveram na Prefeitura (funcionava no Palacete Aquilino Barros) e, à ausência do prefeito que viajara a Manaus a tratamento de saúde, foram recepcionados pelo presidente da Câmara, pelos vereadores Armindo Magalhães Ausier, Cassiano Secundo Nunes de Oliveira, Antônio Soares Pereira, Hiram Fonseca e Osório Alves da Fonseca, o vigário-geral, vários comerciantes e outras personalidades locais. O poeta deslizou por algumas das principais ruas, fotografou e entabulou conversação com diversos populares. Ao fim da tarde, após almoçar e discursar, retornou para bordo. Na madrugada do dia 5, desembarcaria em Manaus.

Celebremos os 70 anos de morte do poeta Mário de Andrade. Ele não foi só o artista que escrevia histórias, mas também o pensador que falava da arte e da sociedade brasileira; que, ao visitar nossa cidade e contatar diretamente com o nosso povo, entrou definitivamente para a história de Itacoatiara.

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