Manaus, 19 de abril de 2024

Manhã de tristeza

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“Dava-se certo alvoroço entre a juventude por onde chegava portando seu chapéu Panamá, sua verve inteligente, seu verso forte e contundente, sua palavra fácil.

O dia amanhecia envergonhado, talvez por não conseguir esconder os traços da noite escura, pois a manhã nascia sob névoa densa e prenuncio de chuva forte, como bem reconhecemos os amazônidas.

Ao constatar o semblante da natureza, pensei que se tratava de relembrança das grandes do res atravessadas por todos nós nesse mesmo dia do ano passado, em razão da agonia desesperada provocada pela falta de oxigênio em hospitais da cidade e a morte de muitos brasileiros. Como se não bastasse, em seguida chegou o aviso do encantamento do poeta Thiago de Mello a quem o tempo não venceu nem há de vencer pois os versos que plantou permanecerão.

Recolhido em casa na cidade de pedra e distante do beiradão de sua Barreirinha, o poeta fizera de tudo, durante certo tempo, para enrijecer os músculos, superar as dificuldades dos anos muitos de vida e sofreguidão e, aqui e ali dedilhava um violão, falava ao telefone com os mais próximos, mas seguia no barco que escolheu ou que as condições de saúde impuseram, até a atracação no porto definitivo de sua morada: o recolhimento.

Tendo ingressado muito jovem na Academia Amazonense de Letras, pelas mãos de Pericles Moraes que foi buscá-lo no início de sua carreira no jornalismo no Rio de Janeiro, não sei se por morar na capital da bossa nova ou por esquisitices de quem quer que seja, desde a posse na cadeira acadêmica nunca mais havia ocupado a tribuna do sodalício em qualquer solenidade, nem mesmo em discurso de recepção.

Estando na presidência da entidade e tendo patrocinado a eleição de Armando Menezes, antigo professor de História do Brasil e figura reconhecida por todos os méritos, sabendo que se tratava de dois amigos irmãos desde a meninice, arvorei-me a convocar Thiago para fazer a saudação oficial na recepção de Armando. Ele aceitou de pronto, mas com uma ressalva: chegaria por lá em túnica branca e da forma como costumava andar, pois smoking” não vestia, nem haveria de vestir. Não relutei e resolvi romper a tradição da Casa e as regras do Estatuto para melhor respeitar a alma livre do poeta, e aceite a imposição. E foi uma festa rigorosamente tocante e recheada de belas lembranças que eles trocaram de público, sob testemunho de quantos pudemos presenciar.

Temperamento agitado, quase sempre em caminhada célere, o acompanhei em série de palestras que a Secretaria de Cultura resolveu fazer para promover o Amazonas Brasil afora, e, dentre outros, o escolhi para a importante missão. Dava-se certo alvoroço entre a juventude por onde chegava portando seu chapéu Panama, sua verve inteligente, seu verso forte e contundente, sua palavra fácil.

Muitas e muitas vezes o recebi em meu gabinete de trabalho na Secretaria de Cultura, sempre do sempre generoso ou rebelde, portando um livro, levando um pleito, expondo uma ideia, tal como sucedeu com a sugestão

precisa que levou à realização do encontro de poetas das Américas nessa nossa Manaus, evento que foi de pleno sucesso, também pelo interesse de outros artistas como Aníbal Beça.

Apesar de saber muito bem que seu canto vence a escuridão e seguirá ressoando, a despedida é sempre momento difícil e dolorido, tal como anunciou a natureza nesse amanhecer tristonho e sentido de 14 de janeiro de 2022.

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