Manaus, 16 de abril de 2024

Lembranças de Itacoatiara

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*Ruy Alencar (In memoriam)

A nossa chagada à cidade logo depois da famosa Batalha Naval de Itacoatiara, onde o “Andirá” e o “Jaguaribe” tiveram fim inglório no fundo do rio e, com eles, muitos dos revoltosos vindo do Pará – encontrou a cidade ainda cheia de estórias.

Estórias como a do Padre Pereira, que em. missão humanitária a bordo do navio Capitânea (para pedir que a cidade fosse poupada do bombardeio) e que foi escorraçado de volta à terra. Havia também a do heroísmo de alguns poucos que, tendo conseguido rifles e espingardas, se entrincheiraram nos buracos cavados ao longo dos barrancos para defender a “sua cidade”. Contava-se que um desses atiradores é que havia “virado” a batalha em favor dos legalistas pois tinha atingido, logo no início, o artilheiro do canhão principal, colocado na proa do “JAGUARIBE”, a descoberto para o lado da margem. Depois, a arremetida do “Ingá” e do “Baenpendi” com as tropas do 27BC qual arriêtes, afundaram os dois navios tomados pelos revoltosos.

Paralelamente, as “gozações” com os “corajosos” que apareceram depois da luta e que eram desmascarados por testemunhas que os haviam surpreendido subindo em pupunheiras (sem delas sentirem os espinhos) perseguidos por vacas bravas, soltas nas matas que rodeavam o Curro.

Essas eram as conversas preferidas da garotada, no interior do Grupo Escolar Coronel Cruz, velho casarão de madeira ao lado da igreja Matriz e que, segundo alguns havia servido de hospital e hotel para os soldados feridos – daí os fantasmas que costumavam amedrontar os alunos madrugadores, como nós…

Mais alguns anos e as festas do Botafogo e do Amazonas e a alegria da Estrela Sarapó e das Mimi e Marília do Nicanor, a música do “Seu” Roldão e seu clarinete e o conjunto do João Onely e o Ramiro e seus violões, afinainadíssimos esses dois, mas nem tanto o primeiro… Esse conjunto também se fazia presente nos famosos arraiais que se seguiam a coroação de N. S. da Conceição, representada pela garota mais bonita da cidade, escolhida a dedo pelas Peixoto – Lalá e Doria Maria… No outro extremo da cidade, na Colônia, lá para o lado das 18 (conjunto de  casas mandado construir pelo homem de negócios e ex-prefeito da cidade, Sr. Isaac Péres) o dono da festa era o Dóca Rates chausen. A melhor de todas elas talvez tenha sido a da sua criação de galinhas tão grandes e tão fortes que um, dia uma delas cantou e virou galo, batendo em violenta luta o dono do terreiro. Ou seria a da mangueira, que de tão velha, mas velha, começou a claudicar e passou a dar laranjas, mamão e abacaxi; tudo da melhor qualidade.

E os jogos de “footbal”, nos domingos à tarde, no campo que ficava ao fim da avenida, então sombreada por árvores de “manzapa” (que um prefeito, mais tarde, mandaria cortar “por serem imorais”, devido ao formato de seus frutos) eram a maior diversão da cidade. Essas disputas entre Botafogo e Amazonas quase sempre acabavam em “bate-bocas” e culminaram, num. certo domingo festivo, em violência e tragédia. O Antonico, do “Seu” Alípio, foi morto a tiros pelo concorrente de seu vai   segundo maior proprietário de carroças e carros de luxo da cidade, o “Seu” Emídio. esse fato, e muitos anos depois, o tiro de espingarda que atingiu o Zé Rolin, no Stone, foram os únicos atos de violência que presenciamos em nossa infância.

No resto, Itacoatiara foi sempre o retrato fiel de uma cidade do interior, pacata, alegre, e amiga, Itacoatiara do Olho D´água e da lavagem das carroças ao fim da tarde, na rampa, (quando moleques aproveitávamos para sobre ela nos banhar, a despeito das recomendações sobre os candirus que já haviam atacado e furado a barriga do cavalo do Isauro, jogador do Botafogo). Itacoatiara das tardes calmas, quando matávamos o tempo à beira do barranco desfiando conversas e aguardando o apito da Usina da Luz às 6:00 h, para corrermos para casa. Itacoatiara das aventuras não tão inocentes como a experiência com a espingarda por nós fabricada em co-parceria com o Antonio Ramos, aproveitando um cabo de guarda-chuva de ferro, e que literalmente estourou ao primeiro tiro, furando dezoito latas de óleo de copaíba do armazém do “Seu” Oscar Ramos, chamuscou o rosto do Antonio (o artilheiro que a sobrecarregou) e deixou-lhe pontinhos negros que ainda hoje carrega pela face; ou então quando os mesmos “inventores” certo dia, por excesso de combustível, explodimos a caldeira da usina experimental também por nós idealizada e construída e que, além do forte estampido, só conseguiu mesmo foi emitir, instantes antes, um fraco silvo que alegres chamamos de apito, como a alardear, aos quatro ventos, que os Stevensons de Itacoatiara também haviam descoberto a máquina à vapor… Essa a Itacoatiara da minha infância. Lembra-me bem a minha chegada. Corriam os anos 37, mas as imagens surgem vivas, de quando a deixamos pela primeira vez!

Era uma tarde morna e quieta e logo após se ouvir o apito do navio, chega em casa o carregador Oscar para transportar a bagagem para bordo. Seguimos apressados, meu pai e eu. Na descida da rampa já nos esperava a catraia Iracema, do Seu Anísio.

Embarcamos, sou apresentado ao escrivão de bordo com as recomendações de sempre: – o cuidado com o dinheiro da mesada e o portaló (donde muitos passageiros já haviam caído n´água e desaparecido para sempre) e as despedidas.

A âncora é levantada, novo apito no Depínêdo e zarpamos rumo a cidade grande, singrando as águas em direção à “ponta de cima” da ilha do Cururu. rápidos passamos pelo mercado, pelo comércio do mestre Eron Fernandes e do Osório Teixeira e logo o Doca Rates e o Ventura!

Voltamos os olhos para a silhueta do casario que já se confunde a distância e da qual apenas se distingue o prédio do Oscar ramos e a torre da igreja, que logo também desapareceram no lusco fusco da distância e do entardecer. Dobramos a ponta com o coração apertado no peito e uma enorme vontade de chorar, mas contendo o choro “que homem não chora” e procuramos nos distrair com a beleza do verde que abraça o rio. Neste êxtase colorido vislumbramos, que boia aqui e ali, um boto tucuxi e que passa voando rente ao rio um corta-água atrasado nos eu retorno ao ninho ou mesmo uma ou outra touceira de canarana que desce a correnteza ao sabor das águas, levando lodo o nosso desejo de voltar para a terra querida que mal deixávamos. As saudades sufocam. Ou seria a realização de que abandonávamos, naquela hora, a inocência da vida de menino feliz do interior?

O relógio do tempo continua seu curso inexorável, e vinte e quatro horas depois de uma viagem onde não sabíamos o que mais nos atormentava-se o medo de escuridão da noite, ou do navio bater em alguma pedra ou tora flutuante, ou o pavor do desconhecido que vinha pela frente, ou ainda a brusca separação do nosso mundo de até então – finalmente chegamos a Manaus!

Anos de estudo e de descobrimento de novos valores, novos amigos, com retornos ocasionais à terra onde não nascemos, mas da qual fizemos o nosso berço, e chegamos à juventude! Era a Segunda Grande Guerra e a febre que nesta fase da vida costuma atacar os jovens, nos impediu a nos juntarmos às Forças Aliadas que lutavam contra o Eixo. Lançamo-nos rumo aos Estados Unidos para tentar a aviação e nos alistarmos na Força Aérea, após curso de pilotagem. Esse desejo deve ter surgido do Ícaro que por vezes fomos, quando do cume da mangueira em frente a velha usina da luz do Jauari, costumávamos sonhar contemplando as nuvens e espionar, de vez em quando, as lavadeiras lá em baixo, a beira do rio, quando terminada a faina diária, se desnudavam trocando as roupas molhadas…

De Manaus seguimos direto para Belém, onde seríamos submetidos aos exames médicos na FAB e no Consulado Americano, e donde o guerreiro amazonense partiria rumo à glória. Nosso navio passa ao largo em Itacoatiara, alta madrugada, mal dando ao viajante tempo para descobrir mangueiras amigas! Disseram-me depois, que meu pai em uma canoa, ainda tentou fazer parar o navio, disparando tiros para o ar, mas em vão.

Essa foi a nossa segunda despedida da querida Velha Serpa. Seguimos o nosso destino. Não chegamos a fazer a guerra, mas conhecemos outros mundos, vivemos intensamente, mas sempre trazendo dentro do peito uma parte do que havíamos deixado para trás, a melhor parte de nós mesmos…

Hoje, já com a neve que cobria a nossa cabeça ficando cada vez mais rarefeita, estou tão perto de ti, Pedra Pintada, mas sem tempo (ou será coragem?) de rever-te! É porque a imagem que de ti guardo e tão preciosa e meiga que não quero correr o risco de conspurcá-la com uma realidade que sei ser bem diferente. Os amigos de outrora, por onde andarão? O Arlindo Rego, o Arlindo Boroboró, o Kim Stone, o Pina Montenegro, o Pedro Smith, o Candinho e o Paulo Menezes e tantos outros companheiros de infância. O que terá sido feito deles? E a simplicidade e beleza bucó1ica e inocente de nossa cidadezinha do interior, o que fizeram dela o progresso e o tempo?

*Professor. Filho do doutor Estácio de Albuquerque Alencar, dentista e exator federal, e de dona Tereza Girão de Alencar. Nasceu em Codajás/Am. em 15/05/1925. Ainda criança veio com seus pais e dois irmãos mais velhos, Horácio e Júlia Girão de Alencar, para Itacoatiara onde concluiu o curso primário. Fez o ginasial em Manaus habilitando-se como técnico de nível médio em comércio. Foi casado com a senhora Socorro Chaves de Alencar, nascida no rio Arari, com que teve 4 filhos: Ruy Jr, Renato, Roberto e Luís. Versado em inglês, trabalhou na RDC – Rubber Development Company que transportava, por aviões cargueiros, a produção de borracha do Amazonas para os EEUU no esforço de guerra. Serviu ao Exército Brasileiro no Rio de Janeiro, graduando-se em Cabo. Ao final da Segunda Guerra, retornou a Manaus onde passou a trabalhar em um escritório comercial servindo às empresas Philippe Daou e Ilídio Ramos & Irmãos, está sediada em Itacoatiara. Seu conhecimento da língua inglesa e o bom conceito que tinha em Manaus levaram-no a ser professor da rede pública e a criar – em parceria com alguns amigos e familiares – o English Speaking Club. Por sua notoriedade pessoal e o sucesso alcançado à frente dessa instituição, foi convidado pelo Departamento de Estado do Governo Americano a fazer um curso de pós-graduação na Universidade de Coral Gables, na Flórida. Um dos fundadores do Instituto Brasil-Estados Unidos, em 06 de julho de 1959, que o presidiu até sua morte em 13/04/2001, o professor Ruy Alencar, além de homenageado várias vezes no Brasil e no exterior, conviveu com grandes personalidades nacionais e internacionais. Em vida, caracterizou-se pela humildade e gestos simples e jamais escondeu a grande paixão que nutria por Itacoatiara. Em 2021, o ICBEU Manaus, celebra seus 65 anos de existência. Inicialmente denominado “English Speaking Club”, em 1958 passou ao nome atual : INSTITUTO CULTURAL BRASIL ESTADOS UNIDOS. Por motivo de registro de marcas e patentes, foi acrescentado pelo atual presidente, o Dr Fabian Barbosa, o nome Manaus. De modo que o oficial é “ICBEU MANAUS”.

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Uma resposta

  1. Excelente matéria. Viajei no tempo. O autor era primo de minha mãe. Parabens! Se tiver oportunidade mande algumas outras notas do nosso Ruy ou de seu pai Estácio e/ou de meu bisovo Zozimo.

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