Manaus, 29 de março de 2024

Fundação de Itacoatiara

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(Produzido especialmente para o FECANI)
A Cidade-sede do Município de Itacoatiara está plenamente inserida na geografia mundial. Comunidade de origem luso-indígena componente do Subcontinente brasileiro, sua trajetória política, econômica e social forma um capítulo simples, porém, marcante e construtivo da crônica da humanidade. Cidade média de responsabilidade social, de clima tropical úmido, circundada de matas de terra firme, várzeas e igapós, tem relevância histórica no contexto de ocupação da Amazônia Ocidental e guarda em seu espaço urbano a memória, a cultura e a identidade do amazônida. Acha-se assentada à margem esquerda do Rio Amazonas, a jusante da embocadura do Madeira e a 26 metros acima do nível do mar, e integra a Mesorregião do Centro Amazonense, sob as coordenadas geográficas Latitude -03º 08’ 35” e Longitude 58º 26’ 39”.

Os “períodos densos” – momentos de ruptura, na longa duração, que transformam, em velocidades distintas, as estruturas sociais e as formas espaciais de uma cidade – são numerosos na sua história. Além desses, que seguem uma ordem cronológica, que obedecem à periodização historiográfica, há os anteriores, que deixam prever os que hão de seguir-se. Induvidosamente, os antecedentes históricos do Continente americano, do Brasil e da Amazônia, também o são da Cidade de Itacoatiara.

Segundo a lição de experientes cultores da Antropologia Social, o homem moderno, Homo sapiens, surgiu no sul da África há cerca de 200 mil anos. Muitos desses humanos, ou seus descendentes, saíram de sua terra de origem há uns 70 mil anos, cruzaram o Mar Vermelho no rumo da Ásia e ganharam o mundo. Provavelmente, o primeiro homem chegou ao Novo Mundo há 14 mil anos atrás e a porta de entrada foi o Estreito de Bering – acidente geográfico que separa a Ásia da porção norte das Américas. Em pequenos grupos, seguindo lentamente em direção sul, atravessaram as Américas do Norte e Central, passaram pelo Istmo do Panamá, entraram na América do Sul pelo território da Colômbia e finalmente chegaram à Amazônia.

Os registros mais antigos atribuem aos primeiros habitantes da Amazônia primitiva datações com 12,5 mil anos. Vestígios com datação entre 9.200 a. C. e 6.000 a. C. sugerem que nesse largo período grupos de caçadores-coletores começam a se espraiar por toda a região. É possível que, entre 4.000 a. C. e 2.000 a. C. tenha ocorrido, na Amazônia, a transição da caça e da coleta para a agricultura. O alto Rio Madeira teria sido lugar de domesticação da mandioca e da pupunha.

Entre 3.000 a. C. e 1.450 d. C. as margens do Rio Amazonas teriam sido contínua e densamente povoadas. Tal hipótese levou o demógrafo norte-americano William Denevan a defender um número superior a 06 milhões de habitantes para o conjunto da região, antes da chegada do europeu. O território que hoje corresponde à microrregião de Itacoatiara constituía um largo espaço tropical ocupado por sociedades tribais de formação superior, que povoavam a várzea e a terra firme vivendo na fartura e em tranquilidade. Após a chegada do estrangeiro invasor, seriam vítimas históricas de uma colonização cruel e genocida.

Na margem esquerda do Rio Amazonas, entre o Rio Preto da Eva, a oeste, e o Rio Uatumã, a leste, a movimentação dos primeiros residentes foi intensa e muito forte. Povos de língua Aruak, vindos das regiões fronteiriças de Venezuela e Colômbia, há vários milênios haviam se estabelecido naquelas terras. Em 1550/1650, ainda no lado esquerdo do grande rio, entre o Urubu e o Nhamundá, preponderavam membros da nação Aroaqui. Trabalhavam na pesca, na caça e na agricultura, e se notabilizavam pela perfeição com que fabricavam artefatos cerâmicos. Deles, só restaram os cerâmeos do cemitério pré-colombiano que construíram na Costa de Miracanguera, na mesma margem do Amazonas, fronteiro à Ilha da Benta e ao Paraná do Arauató, um pouco acima do Aeroporto de Itacoatiara.

Mas, a maior prova da presença humana anterior à chegada do europeu, no território-polo de Itacoatiara, são os desenhos rupestres existentes nas rochas do baixo Rio Urubu e do sítio Itaquatiara, na orla do Jauari. Tais afloramentos rochosos, somados a outros existentes em Silves e Manaus, compõem um universo de cerca de 30 sítios arqueológicos datados de 02 mil a 07 mil anos antes do tempo atual. Talvez denunciem uma forma de comunicação entre as populações pré-históricas dos três municípios. Embora estudadas desde o final do século XIX por historiadores como Barbosa Rodrigues (1842-1909), Bernardo Ramos (1858-1932) e Kurt Nimuendaju (1883-1945), as pedras de Itacoatiara só recentemente receberam um tratamento acadêmico de catalogação minuciosa, graças ao convênio celebrado em 2009, entre a UFAM, o IPHAM e a Prefeitura Municipal, e executado pela equipe da arqueóloga paulista Helena Lima.

Quanto aos primeiros residentes da margem oposta do Amazonas, no trecho abarcando os sertões do Rio Madeira, que nos idos coloniais pertenceram a Itacoatiara, ali predominaram povos das etnias Karib e Tupi, destacando-se a nação dos Zurina, a dos Cayana, a dos Ururihau, a dos Anamari, a dos Guarinuma, a dos Curanari, a dos Erepunaca e a dos Abacaxis. A partir da foz do Madeira havia os Zapucaya, os Urubutinga, os Guaranaguaca, os Marágua, os Quimau, os Burai e os Tupinambarana – estes, desde o final do século XVI, fixados na ilha homônima que se estende de Nova Olinda a Parintins.

Em fins do século XVII, as nações mais conhecidas do Madeira eram os Iruri, os Paranapixana, os Torori, os Aripuanã, os Onicoré e os Abacaxis, pertencentes ao grupo Tupi, e os Arara, ao grupo Karib. Nas primeiras décadas do século XVIII, no Paraná do Urariá e em seu entorno, preponderavam os Sapupé, Comaní, Curitiá, Urupá, Aitouariá, Acaraiuará, Brauará, Maturucu e Abacaxis. Também na calha do Madeira circulavam os Torá (grupo xapacura) e os Mura (tribo de língua isolada). Na segunda metade do século XVIII, as etnias que formavam a população da antiga Serpa, atual Itacoatiara, eram os Abacaxis, Baré, Aponariá, Curuaxiá, Iruri, Juma, Juqui, Onicoré, Sará, Urupá – povos Tupi oriundos do Madeira – e os Pariqui, do grupo Aruak, que foram descidos do Rio Uatumã.

Todos estes povos estão extintos ou destribalizados há mais de duzentos anos. Boa parte deles havia sido dizimada e incorporada como mão-de-obra servil nas vilas e fazendas portuguesas e seus remanescentes haviam-se refugiado pela terra firme, longe dos rios frequentados pelos colonos. Pouquíssima coisa sobrou do modelo demográfico característico do período pré-colonial, de forte concentração indígena, encontrado em Itacoatiara. Neste século XXI (ano de 2007) somente 350 descendentes dos Mura foram registrados ocupando quatro aldeias no entorno de nossa cidade. Três anos antes, eram 477 espalhados pelo Rio Urubu e Paraná do Arauató.

A Conquista europeia

Durante os séculos XV e XVI, Portugal e Espanha lançaram-se nos três oceanos e estenderam seus domínios à África, à Ásia e às Américas. Financiado pela Coroa de Espanha, o explorador italiano Cristóvão Colombo (1451-1506) dirigiu-se para o oriente navegando pelo Atlântico. A 12 de outubro de 1492 chegou à América Central. Mas, o primeiro europeu a pisar na Amazônia foi o navegador espanhol Vicente Yãnez Pinzón (1462-1514). Em fevereiro de 1500 “descobriu” o estuário do Amazonas. Por alguns dias, iniciando a invasão progressiva das terras amazônicas, suas caravelas deslizaram pelo grande rio, que ele denominou de Santa Maria de La Mar Dulce. A seguir, tomou posse da região em nome do reino espanhol.

Depois da passagem de Pinzón, o mistério e a imensidão da Amazônia despertaram a cobiça e o desejo de possui-la. Apesar de logo visitada por navegantes, corsários e piratas de várias nacionalidades, Portugal se antecipou e venceu a concorrência. A região, pelo Tratado de Tordesilhas celebrado em 1494, era quase toda de Espanha, mas foi envolvida pela audácia dos portugueses para ser dominada politicamente e explorada em termos econômicos.

Um registro importante é da viagem do navegador espanhol Francisco de Orellana (c.1511-1546). Em dezembro de 1541 partiu de Quito, no Equador, e, pelo Rio Amazonas, atravessou a região. No dia 10 de junho do ano seguinte descobriu a foz do Madeira e ultrapassou o sítio Itaquatiara; a 24 de junho guerreou contra as amazonas na foz do Nhamundá; e no dia 24 de agosto saiu no Atlântico. Sua viagem, relatada por frei Gaspar de Carvajal (1504-1584), revelou uma Amazônia de ocupações densas, diferente da baixa densidade demográfica das aldeias indígenas atuais – quadro que ainda se mostraria significativo à passagem do capitão português Pedro Teixeira (1587-1641), quase um século depois.

Os próximos registros são de franceses que em 1612 visitaram o norte amazônico, e em seguida se fixaram no Maranhão fundando a cidade de São Luís. Três anos depois foram expulsos pelo exército do capitão português Jerônimo de Albuquerque (1548-1618). Também, corsários ingleses, irlandeses e holandeses se introduziram na região, mas foram expulsos pelos portugueses. Como desde 1580 vigorava a união dos reinos de Portugal e Espanha e, portanto, não havia questão de limite entre suas terras na Amazônia, não se questionou os termos do Tratado de Tordesilhas. Então, a 12 de janeiro de 1616 o capitão-mor Francisco Caldeira de Castelo Branco (c.1566-1619) fundou o forte do Presépio, núcleo originário da cidade de Belém/PA – momento em que se iniciou a vida político-administrativa da Amazônia. Na sequência, dom Filipe III (1605-1665) em 1621 cria o Estado do Maranhão e Grão-Pará, com sede em São Luís, e jurisdicionado diretamente a Lisboa.

Na conquista da Amazônia, a Igreja esteve presente conjugando interesses comuns aos da Coroa portuguesa. Tudo seria feito “em nome de Deus e em nome do Rei”. Assim, o padre Luiz Figueira (1575-1643) instala em São Luís em 1622 a Missão dos jesuítas, a quem foi conferida, em 1628, a administração espiritual e temporal dos índios. Em seguida, chegariam padres de outras ordens religiosas para trabalhar na região. Porém, foi a Ordem dos jesuítas que maior importância teve na ação missionária, respondendo inclusive pela fundação do núcleo que deu origem à cidade de Itacoatiara.

Coube ao sertanista Pedro Teixeira a primeira viagem exploratória do Rio Amazonas e a missão de oficialmente tomar posse da região em nome da Coroa portuguesa. À frente de uma comitiva de mais de duas mil pessoas, deixou Belém no dia 26 de outubro de 1637 e foi no rumo de Quito, no Equador, donde retornou em 02 de fevereiro de 1639. No final de novembro passou defronte à boca do Madeira e ao sítio da futura Itacoatiara. No dia 12 de dezembro alcançou Belém. O jesuíta espanhol Cristóbal de Acuña (1597-1675) relatou-lhe a viagem.

Com a extinção, em 01 de dezembro de 1640, da União Ibérica, Portugal recuperou sua independência política e definiu de vez o direito de posse às terras da Amazônia. Segundo o amazonólogo Arthur Cézar Ferreira Reis (1906-1993), “Findas as primeiras cinco décadas do século XVII, os extremos da Amazônia portuguesa estavam bem definidos (…). O Estado do Maranhão e Grão-Pará estendeu-se ao Rio Napo, na parte ocidental; ao Madeira, Mamoré, Guaporé, pelo sul; e ao Orenoco, no norte”. Por essa época, nas regiões mais próximas a Belém, o suprimento de mão-de-obra já estava se esgotando. Os agentes portugueses agiam às claras preando e escravizando índios. Também buscavam minérios e ‘drogas’ silvestres.

Com a chegada do padre Antônio Vieira (1608-1697), aos 16 de janeiro de 1653, acompanhado por mais nove padres, a Missão dos jesuítas foi refundada e a questão indígena priorizada. Investido no cargo de superior regional, com a missão de pacificar a região e ajudar a expandir o domínio da Coroa ao seu interior, logo se tornaria o grande paladino da luta pela liberdade dos índios. Denunciou ao rei dom João IV (1604-1656) os colonos e servidores do Estado comprometidos com a exploração e a escravização dos nativos. Em julho do ano seguinte viajou a Lisboa para pessoalmente condenar os abusos e pedir a revogação da Provisão régia que atribuía às câmaras e aos capitães-mores a administração dos nativos. Em 16 de maio do ano seguinte, regressou triunfante para implantar a Lei de 09 de abril de 1655 garantindo aos jesuítas a administração das aldeias e o governo temporal e espiritual dos índios. Era o primeiro Regimento das Missões e o documento base da ação missionária na região.

Expansão para o interior

A colonização da chamada Amazônia Ocidental teve início na segunda metade do século XVII. Para a entrada inaugural foram convocados os jesuítas Francisco Veloso (1619-1679) e Manuel Pires (c.1637-1678). Partiram de São Luís em 22 de junho de 1657, subiram o Amazonas e, certamente no mês de agosto, pararam em Amatari, uma aldeia da margem esquerda do Paraná do Matari, inserida na região que se comunica com o baixo Urubu e Rio Preto da Eva, próximo à atual vila do Engenho, acima da cidade de Itacoatiara. Lá celebraram missa e assistiram aos residentes Aroaqui. Prosseguindo, alcançaram o Rio Negro e passaram ao Tarumã. Gastaram, na viagem de ida e volta, mais de seis meses: só em janeiro seguinte aportaram em Belém.

Em 1658, Manuel Pires voltou ao Rio Negro desta vez acompanhado do padre Francisco Gonçalves (1597-1660). A nova entrada fixou-se no mesmo local da primeira, na boca do Tarumã, aonde chegou provavelmente no final do mês de setembro. Os missionários subiram às cabeceiras do Rio Negro e só retornaram a Belém em janeiro de 1660.

A terceira entrada também foi protagonizada pelo padre Manuel Pires, em parceria com o padre Manuel de Souza (c.1613-1660). Guiados pelo cabo de tropa Domingos Monteiro deixaram Belém em setembro de 1660 e, depois de várias visitas pastorais ao longo do Rio Amazonas, no final do ano chegaram ao Rio Urubu, onde fundaram a missão de Saracá, atual cidade de Silves.

No início de 1661, recrudescem os embates entre colonos e jesuítas. Os primeiros pugnavam pelo aumento da mão-de-obra indígena. Os vereadores da Câmara de Belém, pressionados pelos descontentes, culpavam os jesuítas pela falta de escravos. O mais visado era o padre Vieira, que em suas falas sempre demonstrou a determinação de criar um mundo para os índios, separado do mundo colonial: uma atitude fortemente contrária aos interesses dos agentes portugueses.

A insatisfação dos paraenses logo se estendeu ao Maranhão, cuja Câmara também se encheu de rebeldia. No dia 08 de setembro, Antônio Vieira e seus companheiros foram presos e embarcados à força para Lisboa. No ano seguinte, os rebeldes foram anistiados e o padre Vieira, além de processado pela inquisição, foi proibido de retornar à Amazônia. Na opinião do historiador português Serafim Leite (1890-1969), o motim de 1661 desmoronou totalmente o projeto do padre Antônio Vieira que, “se fosse adiante, talvez tivesse criado, já no século XVII, a nova Capitania do Amazonas, núcleo do futuro Estado do mesmo nome”.

Fundação de Itacoatiara

Berço do núcleo histórico que originou Itacoatiara, e conhecido dos portugueses desde 1660, o Rio Madeira teve suas margens devassadas a partir de 1669. Além de missionários, anônimos aventureiros, militares e civis, guiados por experientes mateiros e auxiliados por alguns intérpretes da língua geral, por ali transitaram a fim de apreender índios e colher cacau, cravo e outros produtos. Em setembro daquele ano, em missão de catequese, lá estiveram os padres João Filipe Bettendorff (1625-1698) e Pedro Luís Gonçalves (c.1629-1683). No começo de 1672 também deram entrada no colosso fluvial os padres Manuel Pires e João Maria Gorzoni (1627-1711).

Outro missionário que teve presença marcante no Madeira foi o padre suíço Jódoco Perez (1633-1707). Em meados de 1683, decorridos seis meses de sua ascensão ao cargo de gestor regional dos jesuítas, iria compor um interessante capítulo da História da Amazônia, interpretando o papel de fundador e principal ator da cidade de Itacoatiara. Eis o resumo de sua biografia:

Nascido em Friburgo aos 20 de fevereiro de 1633, estudou no Colégio dos jesuítas de sua cidade natal em 1644-1653 e, logo após, ingressou na Ordem jesuítica onde concluiu o noviciado em 15 de outubro de 1655. Fez o curso de Filosofia em 1656-1658 e exerceu o magistério de ensino médio em 1661-1668. Foi ordenado sacerdote aos 19 de junho de 1666. Docente de Lógica no Colégio de Munique em 1667-1668 e de Filosofia na Universidade de Dillingen em 1669-1671. Em seguida foi enviado para a Galiza e de lá para Lisboa, de onde foi para o Estado do Brasil. De Salvador/BA veio em 1678 para São Luís/MA e em seguida para Belém/PA. Entre 1678 e 1681pregou e missionou em diversas aldeias da Amazônia. De 1682 a 1683 foi reitor do Colégio de Santo Alexandre, em Belém. Exerceu o cargo de superior regional dos jesuítas entre 1683 e 1690. Daí até 1697 foi docente no Colégio de Santo Alexandre. Aposentado por idade em 1697, a partir daí passou a confessor nesse estabelecimento. Faleceu em 22 de maio de 1707 em Belém.

No início de 1683, o Padre Geral Carlos de Noielle (1615-1686), de Roma, enviou decreto nomeando ao padre Jódoco Perez para superior regional, o qual tomou posse do cargo provavelmente em 18 de março. A seguir, foi-lhe encomendada a primeira missão externa fora de Belém: visitar o Rio Madeira, subir o maior trecho daquela via fluvial e chegar aos Iruri – “para, segundo Serafim Leite, ver a possibilidade de estabelecer residência entre esses índios”. Antes de partir, padre Perez analisou mapas, fez consultas e anotações. João Filipe Bettendorff preleciona: “O padre Jódoco (…) tinha ouvido coisas grandes do rio da Madeira, foi o primeiro superior da Missão que entrou por ele…”. Serafim Leite complementa: “[A viagem] não exclui entradas anteriores de outros padres, que não fossem superiores da Missão”.

Inegavelmente, a fundação do aldeamento que deu origem a Itacoatiara foi uma decisão geopolítica da Coroa portuguesa. Antes de Jódoco Perez ascender ao posto de superior, o rei dom Pedro II (1648-1706) havia baixado a Lei de 01 de abril de 1680, inspirada pelo padre Antônio Vieira. Solto da prisão em 1667, e isento totalmente de culpa em 1675, batalhou junto à Corte para retirar das mãos dos capitães seculares a direção das aldeias e conferir aos religiosos o monopólio sobre os descimentos e a conversão dos nativos. Tal regimento, além de proibir a escravidão do índio, ordenava a criação dos aldeamentos que deveriam ser governados pelos párocos em cooperação com os “principais” (tuxauas) das tribos. À Lei de 1680 seguiu-se a de 07 de março de 1681 criando a Junta das Missões. Ambas contribuíram para o desenvolvimento do projeto colonial sustentado no plano espiritual – salvação das almas; e no temporal – a expansão e conservação das conquistas portuguesas.

Segundo o historiador português João Lúcio de Azevedo (1855-1933), no dia imediatamente posterior à edição da lei antiescravista de 01 de abril de 1680, o padre Antônio Vieira enviara, de Lisboa, uma carta ao então padre superior Pedro Luís Gonçalves lembrando que o Madeira detinha uma enorme população de índios mansos e especulava sobre a possibilidade de ali se criar um estabelecimento jesuítico – possibilidade que, dali a três anos, o missionário suíço Jódoco Perez tornaria um fato real. A proclamação do potencial do Rio Madeira, além de traduzir o grande apreço devotado à região pelo famoso padre Vieira, antecipava o interesse da Corte em estabelecer uma missão naquelas paragens. A missiva, teorizando sobre a criação do núcleo embrionário da futura Itacoatiara, a certa altura afirmava: “Acima [da ilha dos índios] Tupinambarana há um rio mui povoado de gente de língua geral, e [nele] se poderia fazer uma boa missão de residência”.

De acordo com a lição da historiadora amazonense Márcia Eliane de Souza e Mello, outras ordens régias, complementares às de 01 e 02 de abril de 1680, “foram envidadas para a região, entre elas as que indicavam os jesuítas como preferenciais administradores dos índios já aldeados e exclusivos para as missões a serem criadas nos sertões”. Tais missões, completa Serafim Leite, “operavam-se com desigual intenção, conforme os fins a que visavam. A uns simples entrada catequética, a outros, explorações de ouro, a outros, descida de índios, a outros enfim, aldeamentos fixos, de catequese permanente. Na Amazônia [diversamente do resto do Brasil] não há bandeiras, não há tropeiros. [Há] canoas, montarias e ubás. O deslocamento era a braços do remo ou à vela (…) tudo se passava à beira dum fio de água, e em geral na foz de um rio ou perto dela. Eram as entradas móveis dos rios a determinar a expansão povoadora e civilizadora dos padres e de todos”. A criação de missões na mesorregião amazonense tinha a finalidade de centralizar a catequese dos índios, apoiar a conquista do vale do Madeira e impedir que seus nativos continuassem a comercializar armas e ferramentas em troca de escravos com os holandeses assentados no norte da Amazônia, conforme iria constatar o padre superior Jódoco Perez.

Ano de 1683. O padre suíço, depois de uma viagem de mais de 1.500 km subindo o Amazonas, em serviço de catequese, ingressa no Madeira e, próximo à boca do Rio Iruri, realiza o primeiro contato com membros da etnia de igual nome. Afluente da margem direita do médio Rio Madeira, o Iruri – depois redenominado Mataurá – é um rio pouco extenso e de águas negras, cuja foz mede 80 metros de largo ao tempo do inverno. Fica a jusante do Rio Manicoré, entre o Atininga (à esquerda) e o Mariepáua (à direita).

Jódoco Perez partira de Belém provavelmente a 09 de junho, alcançou a embocadura do Madeira no dia 28 de agosto e seguramente chegou a Mataurá em 07 de setembro – ao todo noventa dias de viagem – confirmando o que a respeito escrevera João Filipe Bettendorff: “Para fazer nova missão na aldeia [dos índios] Iruri gastaram [-se] três meses de viagem sem perigo”. Integravam a expedição, além do padre superior, o irmão Antônio Ribeiro, dois ou três serviçais e uns oito índios remeiros. Antes de alcançar seu objetivo parou em diversas aldeias – para consertar a canoa, descansar, dizer missa ou se municiar de víveres.

Após o desembarque em Mataurá houve a costumeira troca de presentes intermediada pelo irmão Antônio Ribeiro, porque Jódoco Perez “não sabia a língua dos índios”. O leigo Ribeiro, seu companheiro durante todo o seu superiorado, era conhecedor da língua geral e tratava bem com os indígenas. Supondo-se que já anoitecia, só na manhã do dia seguinte – 08 de setembro – Jódoco Perez mandou erigir uma cruz, celebrou missa e, perante toda a gentilidade, fundou o núcleo embrionário da cidade que haveria de vir. Era Dia de Nossa Senhora da Luz e marcaria a primeira data histórica fundamental na vida cristã e civilizada da futura Itacoatiara.

Reportando ao mito da criação, à organização social e aos padrões de assentamento dos índios Iruri, primeiros habitantes de Itacoatiara, João Filipe Bettendorff os define como “nação afamada sobre todas as mais… índios de paz” e de linhagem ‘nobre’; tinham vassalos em seu próprio território. Grupos de língua isolada, dóceis, coletores e ao mesmo tempo agricultores, eram peritos nas artes de torrar farinha e conservar peixes. Dirigidos pelo tuxaua Mamorini, eram os Iruri “repartidos em cinco aldeias, cada uma delas com seu Principal”. Corria lenda que procediam de uma mulher que veio prenhe do céu e pariu cinco filhos: Iruri, Aripuanã, Onicoré, Torori e Paranapixana, que originaram as respectivas tribos. Depois, surpreendida por seus filhos comendo peixe moqueado, essa mulher ficou tão envergonhada que resolveu voltar para o céu. Daí em diante, os índios Iruri não mais comeram peixe assado no moquém.

MAMORINI: o mais importante morador do núcleo que originou Itacoatiara. O poderoso tuxaua dos Iruri, povo indígena hoje extinto que habitava a região do médio Rio Madeira, ocupando comprida faixa de terra margeando o Rio Madeira desde seu afluente Manicoré, ao sul, à ponta inferior da Ilha Tupinambarana, ao norte – perfazendo uma área de aproximadamente 5.000 k2. Seu nome – traduzindo respeito, resistência e imortalidade – lembra a mamorana-grande, árvore bombacácea, irmã da sumaumeira, “a mãe de todas as árvores” e a mais alta da Amazônia. Líder, conselheiro e articulador cultural. Venceu várias guerras iniciadas pelos índios Maué, figadais inimigos de seu povo. Autoridade máxima que comandava guerras e resolvia os conflitos internos. Organizava a caça e as atividades agrícolas. Marcava festas e rituais, enfim, zelava pela ordem e harmonia na vida cotidiana da aldeia. Deixou um legado de sabedoria baseado na vivência com pureza e simplicidade e no respeito pelos seus concidadãos e pela natureza animal e vegetal.

Os contatos da equipe do padre Perez pró-conversão dos Iruri foram feitos em língua geral, com presentes e mensagens de paz. Depois de uns 15 dias missionando entre eles, o superior dos jesuítas baixou levando um filho do tuxaua Mamorini, que no Colégio de Santo Alexandre aprenderia português e nheengatu, e mais tarde retornaria aos seus parentes como um intermediário nas negociações com os missionários. Mas antes de partir Jódoco Perez comprometeu-se com os índios em mandar padres para assisti-los na nova povoação.

A cooptação súbita do jovem Iruri, fazendo-o assimilar a cultura e o pensamento dos agentes da colonização; e a vinda póstera de outros missionários, para garantir a sobrevivência do novo aldeamento, definitivamente constituem-se na prova mais convincente de que a criação da missão de Mataurá dependera duma combinação prévia e a ordem para sua instalação emanara diretamente de Lisboa.

De volta do Madeira, Jódoco Perez alcançou Belém em fins de outubro de 1683. Alertado sobre o estado de intranquilidade por que passava a região naquele momento, gerado da insatisfação dos moradores de São Luís em relação à chamada Lei do Escambo, em carta de 27 de dezembro que endereçou ao Padre Geral, em Roma, expôs a situação e sugeriu medidas para resguardar o futuro da Missão. O motim do Estanco, ou a revolta de Beckman, precipitaria a segunda expulsão dos jesuítas da Amazônia. A insurreição estourou no dia 24 de fevereiro de 1684. O padre superior voltava a São Luís, acompanhado do missionário Aluísio Conrado Pfeil (1638-1701), e foi detido com o mesmo no dia 28. Ao todo, 26 padres e irmãos coadjutores foram presos e deportados a 26 de março.

Assim que a Coroa portuguesa foi informada da rebelião do Estanco, tomou drásticas providências. Seus líderes foram presos, levados a julgamento e condenados com a pena máxima do enforcamento ou com a extradição. Ato contínuo, a maioria dos religiosos jesuítas foi restituída aos seus postos na região amazônica. Jódoco Perez permaneceu dois anos em Portugal. Em maio de 1687 retornou em companhia do novo governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará, Arthur de Sá e Menezes, o qual trazia recomendações do reino no sentido de apoiar o trabalho missionário, segundo os termos da Lei de 21 de dezembro de 1686 – Regimento das Missões. Em seguida, as atividades missionárias e as construções no interior da aldeia foram retomadas em Mataurá.

Durante setenta e quatro anos e sete meses, de 1683 a 1758, o Rio Madeira, seu afluente Mataurá e os subafluentes Canumã e Abacaxis banharam a missão itinerante que os jesuítas criaram em cooperação com os índios Iruri, posteriormente ampliada com o ajuntamento de dezenas de outras etnias. Sempre à busca de um lugar mais propício à segurança e tranquilidade de seus moradores, foi quatro vezes deslocada de seu pouso inicial (de Mataurá para Canumã em 1691; de Canumã para Abacaxis em 1696; de Abacaxis para a margem esquerda do Madeira em 1757 e, finalmente, daí para a margem esquerda do Amazonas em 1758).

O aldeamento ganhou foros de Município em 01 de janeiro de 1759, quando recebeu o título de Vila de Nossa Senhora do Rosário de Serpa. Cento e quinze anos depois, graças a projeto apresentado em plenário da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas, pelo deputado itacoatiarense Damaso de Souza, do que resultou a Lei nº 283, de 25 de abril de 1874, foi elevada à categoria de cidade. No próximo dia 08 de setembro completará 331 anos contados desde a data de sua fundação. Estrategicamente localizada, possui todos os ingredientes de centro urbano moderno, perfeitamente habitável, com amplas perspectivas de progresso e bem-estar social.

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Como sabemos, o termo Itacoatiara foi aportuguesado do tupi i’tá kwati’ara e se traduz para pedra pintada ou riscada. Provém da existência de pedras que ornam o porto do Jauari, o multissecular sítio Itaquatiara. As inscrições nelas existentes só são vistas na época do abaixamento das águas, em pleno verão, quando ficam à mostra. Em razão disso, foi apelidada de “A Cidade da Pedra Pintada”. O outro epíteto que lhe foi conferido, de “A Cidade do Rosário”, decorre de que sua população majoritariamente católica promove o culto à Virgem Maria, tendo como Padroeira Nossa Senhora do Rosário. Também tem sido rotulada de “A Cidade-Canção”, por que sedia o FECANI, movimento lítero-musical criado em 1985 e conhecido em todo o Brasil. Realizado anualmente na primeira semana de setembro, neste ano de 2014 encenará sua 30ª versão. O FECANI ratifica a condição de Itacoatiara ser uma cidade festeira, cuja história, costumes e tradições contemplam a natureza e flutuam em direção aos horizontes da criação, da música, da poesia, da beleza.

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Alírio Marques