Manaus, 29 de março de 2024

Eu pensava ter visto tudo

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*Lya Luft

Escrevo de momento um livro sobre a passagem do tempo, que sempre me fascinou, não apenas pelo fato em si, mas pela nossa dificuldade em lidar com ele. O livro se chama O Tempo É um Rio que Corre, deve saírem 2014, mas eventualmente eu mudo o titulo ainda nos últimos momentos. Seja como for, sempre achei que a idade trazia vantagens (Perdas & Ganhos), uma delas dando origem à expressão “Eu pensava já ter visto tudo, mas … ” diante de algo inusitado talvez escandaloso. Pois eu, que pensava ter visto tudo, não tinha: ainda muito me surpreendo. Assim, fiquei literalmente boquiaberta quando, no Congresso Nacional, centenas de deputados que deveriam representar o povo brasileiro, e ganham regiamente por isso, coroaram um colega condenado à prisão – de fato prisioneiro – mantendo-o no cargo. Nada tenho contra essa pessoa que nem conheço. Mas o extraordinário é que temos ao menos até o momento em que escrevo este artigo, um deputado, uma excelência, morador do presídio da Papuda, em Brasília, reafirmado pela maioria em seu importantíssimo posto – requerendo, aliás, a manutenção de todos os benefícios, como moradia funcional para a família, assessores etc., tudo pago por nós, os trouxas.

Não sei em que estado de delírio (usando um termo brando) as excelências cometeram tão vergonhoso ato, quer votando protegidos pelo torpe voto secreto, quer se omitindo de votar, embora ali presentes, quer se ausentando com a desculpa de não imaginarem que seu voto teria peso, dado o absurdo de a excelência encarcerada ser confirmada em seu mandato. Absurdos acontecem com absurda frequência num Brasil de tantas e tamanhas trapalhadas, uma lista longa, repetitiva, em que mesmo as mais recentes (cada dia uma novidade) não vale a pena mencionar, nem suas amalucadas tentativas de explicação.

Há muito tempo o Congresso, a política em geral está desacreditada entre nós, ao menos entre os que ainda se dão ao trabalho de pensar sobre a situação brasileira. Os que leem jornal (não digo só obituário, esporte e fofocas), assistem a programas de noticias e debates e conversam em casa sobre tudo isso que nos deve infernizar são uma imensa minoria. A maioria talvez comece, aqui e ali, a sentir um calafrio na espinha percebendo as dívidas que corroem seu contracheque ou cartão, mas ainda tentando se distrair com novos estímulos a mais dívidas e mais loucura neste circo em que temos de tudo, inclusive nós, os palhaços para assistir.

Alguém me diz que não me meta em política. Calma. Estou apenas observando e comentando, como habitante deste planeta BrasiL Devo me ocupar mais de flores? Talvez enviando coroas fúnebres a alguns postos e instituições próximas do óbito neste império do improviso e da incompetência.
gente atarantada por ordens e contraordens em profusão, ninguém sabendo direito para onde vamos, como nos movemos, como ainda respiramos.
Acabo de saber que um ministro do Supremo com coragem e bom-senso vai desmanchar o rolo criado pelas excelências naquela infausta sessão; espero que a Papuda fique fechada, impenetrável e inescapável, e que as notícias futuramente sejam apenas de outros sabidos criminosos lá recolhidos, com algema, banho frio, comida medíocre e tudo o que temos direito de imaginar.

Podendo pela experiência de vida dizer a frase que sempre me causou uma inveja divertida, “Eu que pensava já ter visto tudo”, desta vez preferia não a poder usar. Precisamos urgentemente ter notícias boas, com todas aquelas excelências consternadas revendo e cumprindo seu papel em favor do país, e não o colocando no ridículo. E, já que é um assunto do momento, queremos a boa-nova de que médicos brasileiros ou estrangeiros cumprindo as provas legais encontrem condições mínimas para trabalhar em postos comando com assoalho e telhado, leitos, aparelhos e instrumentos, além de remédios para cuidar dos doentes mais precisados (com esforço, ainda resta algum otimismo).

*Escritora. Artigo inserido na Revista Veja nº 2338, de 11/09/2013.

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