Manaus, 19 de abril de 2024

A culpa é do outro

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Fernando Molica

*Fernando Molica 

Em um trágico incêndio, o Brasil perde o imenso e valioso acervo do Museu Nacional do Rio por pura negligencia. É assim em um país que não valoriza sua história, não aprende com os erros e cisma em fingir que os responsáveis nunca podem ser identificados. 

Do palacete de três andares em estilo neoclássico sobraram as paredes ocas e as imponentes portas de ferro da entrada. Quase todo o resto foi consumido pelas labaredas do incêndio que assolou o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, durante sete horas, a partir do começo da noite de domingo 2. E que resto: mais de 20 milhões de peças de um dos maiores acervos de história natural e antropologia das Américas. Como pôde acontecer um desastre desses? Quem falhou? Respostas vieram, aos borbotões, enquanto o fogo engolia o prédio de mais de 200 anos na Quinta da Boa Vista, Zona Norte da cidade, antiga sede do Brasil imperial, residência de dom Pedro II e, até a última semana, um pulsante centro de produção de conhecimento. Ministros puseram a culpa na administradora, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A reitoria e a diretoria do próprio museu devolveram a bola aos ministérios, que cortam recursos. “Governos anteriores” foram muito mencionados. No jogo de empurra, sobrou até para os bombeiros. A semana foi passando e ninguém pediu desculpas, ninguém se demitiu, ninguém foi demitido. E provavelmente nem será: o Brasil é o país das tragédias sem culpados e sem punição, uma realidade que torna ainda mais pungente a visão dos escombros destelhados.

fig1 - A culpa é do outro

 

Não há nada de anormal, infelizmente, nesse empurra empurra das autoridades, nessa ausência de culpados e em instalações maltratadas que produzem tragédias. Erra-se, erra-se, e não se aprende. Levanta-se, sim, um clamor quando o drama ceifa vidas humanas e toca de perto o sentimento das pessoas. O rompimento de uma barragem de dejetos minerais em Mariana, Minas Gerais, em 2015, o maior desastre ambienta I da história do país, permanece na memória brasileira pelo rastro de mortes e um vilarejo inteiro enlameado e vazio – e nenhum condenado. Também continua a causar horror o cenário carbonizado de 2013 da boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, uma caverna de poucas saídas, pronta para entrar em chamas, que tirou a vida de quase 250 jovens que buscavam apenas diversão. Mas alguém pagou por isso? Tirando três bombeiros de Santa Maria julgados pela Justiça Militar e condenados a penas leves, ninguém, absolutamente ninguém, foi punido até agora. Quanta diferença da vizinha Argentina, onde em seguida ao incêndio da boate portenha Cromañón, em 2004, foram presos o gerente, a banda que se apresentava, um policial, membros do governo e o dono do clube. Até o prefeito sofreu impeachment.

Quando museus queimam – e muitos queimam -, porém, à impunidade juntam-se o descaso oficial e, sim, uma certa apatia da população, desacostumada a olhar com apreço para sua cultura e sua história. “No Brasil não existe uma ética do respeito pelo patrimônio, o que é falha da sociedade como um todo”, diz o filósofo Roberto Romano. A lista dos esquecidos é longa. Em 1978, uma falha até hoje não esclarecida (suspeita-se de um curto-circuito em uma fiação sem manutenção) pôs fogo no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e obras-primas de gênios como Picasso, Matisse e Miró se perderam para sempre. No exterior, o Brasil ficou tão malvisto que passou décadas sem receber exposições relevantes. Aqui, ninguém foi responsabilizado, o museu reabriu e ficou por isso mesmo. O moderno Museu da Língua Portuguesa e o Memorial da América Latina, em São Paulo, também pegaram fogo nos últimos anos. Deve ter sido por causa de algum fio que se soltou ou uma luminária com defeito. Deve. Ao certo, não se sabe. Nenhuma pessoa assumiu a culpa e pediu, contrita, demissão de seu cargo. As labaredas caíram no esquecimento.

Na noite em que o Museu Nacional queimou, um dos primeiros a se manifestar foi o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, apontando o dedo para governos que “quebraram o Brasil” e para a UFRJ. “Se você gerencia algo, você é responsável por isso”, disparou. O diretor do museu, Alexander Kellner, saiu em defesa de seu empregador: exigir que a universidade resolva todos os problemas “é covardia”, disse. O reitor Roberto Leher, além de lançar a culpa sobre a verba curta, disparou contra a falta de “logístíca e capacidade de infraestrutura” dos bombeiros, que ficaram paralisados durante quarenta minutos porque, segundo disseram, existiam hidrantes inoperantes. O coronel Roberto Robadey, comandante da corporação, provocou: “A UFRJ tem sido um cliente preferencial nosso” – referência aos sete incêndios no campus desde 2011. Afinal, faltou água? A Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) não deixou a bola quicar: afirmou que havia água em ‘seis hidrantes próximos “com pressão adequada”. O presidente Michel Temer limitou -se a lamentar a tragédia. O prefeito-fantasma do Rio, Marcelo Crivella, apareceu na Quinta da Boa Vista no dia seguinte e virou piada ao prometer reconstruir o museu e “recompor cada detalhe eternizado em pinturas e fotos ainda que não seja o original”.

fig2_A culpa é do outro

O Museu Nacional não tinha certificação do Corpo de Bombeiros, apresentava paredes com pintura descascada e penava fazia tempo – mais de um século, na verdade – com falta de dinheiro. Um trecho do relatório

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IMPUNIDADE 1 Após o incêndio da Boate Kíss, em 2013. só três bombeiros foram punidos

IMPUNIDADE 2 A paisagem enlameada em Mariana, depois do desastre ecológico: ninguém foi condenado

DESTRUIÇÃO O MAMcarioca em chamas. em 1978: a causa provável da perda de obras-primasfoium curto-circuito

Museu Nacional do Rio de Janeiro”, de 1905, informa um corte de verbas de 31 de outubro de 1843: “As despezas deste estabelecimento para os anos de 1843 e 1844 tinham sido reduzidas pela lei de orçamento a cinco contos de réis, devendo, portanto, com urgência fazer-se as reduções necessárias”. Em 1901, um jornalista do Correio da Manhã visitou o museu e registrou que ele “lutava com bravura contra a escassez de recursos”. É uma crônica incessante.

Em 1995, metade das salas foi interditada por causa de infiltrações e uma infestação de cupins. Em 2004, quando comandava a Secretaria Estadual de Energia, o engenheiro e hoje secretário de Educação Wagner Victer alertou: “O museu vai pegar fogo. São fiações expostas, malconservadas, alas com infiltrações, uma situação de total irresponsabilidade com o patrimônio histórico”. A VEJA, Victer lembrou que, na época, foi criticado pelo governo federal. “Não era um tema afeito à minha pasta”, disseram-lhe.

Segundo o Ministério da Educação, em 2013 o museu recebeu 959000 reais, o que representava 0,2% do total da verba não comprometida da UFRJ. Em 2017, nem metade disso: foram 364000 reais. Para este ano, o repasse previsto era quase igual, mas até agosto apenas 98000 reais haviam sido entregues e foram gastos principalmente em pesquisas e manutenção de equipamentos, de acordo com levantamento da ONG Contas Abertas. Com a segurança do prédio, nada. Em resposta a um inquérito do Ministério Público Federal que investiga medidas de prevenção em museus do Rio (sem grandes resultados, como se viu), a direção do Museu Nacional relatou em 2016 que possuía sistema de detecção e “farta distribuição” de extintores, mas destacou que isso era “claramente insuficiente” para uma segurança efetiva. Negociou, inclusive, com o BNDES uma verba para atender a essa questão. O contrato de 21,7 milhões de reais foi assinado emjunho e a primeira parcela seria liberada no mês que vem. Não deu tempo.

Por volta das 19 horas do domingo, duas horas depois de fechado o museu, os quatro vigias de plantão viram um clarão entre o térreo e o 12 andar do prédio e acionaram o Corpo de Bombeiros. O fogo se alastrou rapidamente. Alunos e pesquisadores acorreram ao local e arrombaram portas na tentativa de salvar parte do acervo, como relata o biólogo Paulo Buckup (leia na pág. 68). Muita gente perdeu o trabalho de uma vida. “Vi meu laboratório explodir”, conta João Wagner Castro, professor de geologia marinha. Na manhã seguinte, focos de incêndio ainda ardiam diante de uma multidão que se aglomerava na frente do velho palácio. Do lado de fora dava para ver, intacto no meio das cinzas, o meteorito Bendegó, que já passou por coisas piores. Houve uma manifestação no centro do Rio em protesto contra a inépcia que levou à tragédia e permeia toda a ciência brasileira (veja o quadro na pág. 66).

Para uma grande parcela da população, o bicentenário Museu Nacional entrou no mapa naquele triste domingo. 

História que se apaga

As chamas que engolfaram os três pavimentos do maior e mais antigo museu do país consumiram. em pouco mais de sete horas. 90% do acervo de 20 milhões de peças. Tesouros preservados durante séculos, até milênios, provavelmente viraram cinzas. Ainda que alguns itens tenham sobrevivido, as coleções de paleontologia, etnologia, antropologia e muitas outras nunca mais serão vistas em seu esplendor.

figura_A culpa é do outro

*Jornalista e escritor. Artigo em parceria com Fabio Codeço, Luisa Bustamante e Maria Clara Vieira na Revista Veja nº 2599, de 12/09/2018.

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