Manaus, 29 de março de 2024

Conde Ermanno Stradelli

Compartilhe nas redes:

mario ypiranga monteiro
*Mário Ypiranga Monteiro

Vivendo longe do local em que o conde Dr. Ermanno Stradelli passou mais da metade de sua existência, o ilustre escritor brasileiro Luís da Câmara Cascudo não poderia conhecer detalhadamente a dura experiência por que passou aquele italiano migrado. Seu livro Em memória do Conde Stradelli (1852-1926), 1ª edição, 108,    Livraria Clássica Editora Manaus, 1926, representa por isso mesmo o que um cérebro privilegiado poderia conceber e escrever sem o apoio da pesquisa de campo, neste caso umas tantas entrevistas com pessoas que privaram da amizade e da convivência daquele celebrado homem. Dessas pessoas só me vem à memória o nome do tabelião e músico de Tefé, Sr. Francisco de Lima, falecido aposentado no Ceará no meado deste século, e o comandante Praia, genitor do Dr. Aldévio Praia. Não havendo esse tipo de apoio para uma biobibliografia não muito bojuda, o escritor Câmara Cascudo serviu-se de informações (poucas), solicitadas ao governador Dr. Álvaro Maia, das tradições que envolviam a pessoa do poeta e amazonólogo italiano e de sua própria obra inacabada. O livro do eminente folclorista resume, portanto, a vida do nobre italiano que renunciou pátria, família e comodidades, para viver a existência nômade e relativamente monacal, um triste exilado da convivência de amigos, interessado apenas na sua dor anímica e nas suas pesquisas da cultura indígena. O Dr.             Ermanno Stradelli chegou a ser em Manaus o representante legal de uma firma construtora do Teatro Amazonas, advogando nas horas extras como o fizeram outros, do tipo Quintino Cunha. Naquela época, até mais ou menos 1910, privou da amizade de pessoas bem situadas, e acompanhou o governador Dr. Constantino Nery ao Rio Branco, juntamente com o escritor Dr. Alberto Rangel. Embora Câmara Cascudo não diga, o retrato do conde, que estampo na sua biografia, vem no documentário fotográfico daquela viagem, em corpo inteiro. Pela foto daquele álbum percebe-se que o conde Stradelli não se sentia bem frequentando reuniões, uma espécie de timidez, ou de reserva, levava-o a distanciar-se, a esconder-se quase. Era a moléstia que o transia. Ele sabia naturalmente que a tradição popular não esquecia o escorraçamento social em que o leproso vivia na Idade Média, e da reserva que toda gente tem pelo estado de saúde do contaminado.

A biografia do conde, e suas andanças, ao parecer, foram encaminhadas pelo governador Dr. Álvaro Maia, no entanto podemos dizer como coisa certa, haver encontrado um bom informante nas pessoas do Dr. Anísio Jobim, historiador, juiz em Tefé e depois desembargador, o também juiz, Dr. Castro Monte, e o Dr. Júlio   Nogueira, advogado, que comparece no coice da obra de Cascudo com um artigo alusivo. Castro Monte foi quem   me apresentou àquele tabelião referido. Ignoro se outras pessoas auxiliaram o Dr. Álvaro Maia na boa vontade com que atendeu ao Dr. Câmara Cascudo, mas é possível que a ajuda houvesse partido com prioridade da competência do Dr. Anísio Jobim, que fora um dos mais entusiasmados promotores das biografias dos municípios do Amazonas e cuja biblioteca particular já era famosa àquele tempo.

Eu fico frustrado toda vez que um cidadão escreve um livro sobre a minha terra (livro bom, claro) e vejo tanta negligência em autores amazonenses que se plantam no meio do caminho da História construindo montagens, repetindo o que outros já disseram (e nem sequer sabendo interpretar o nocional relido), enquanto há temas não procurados, não identificados, não valorizados, como esse das biografias. Por isso mesmo saudei com animosa sinceridade a obra do meu prestante amigo Dr. Câmara Cascudo, escrevendo-lhe um bilhete e relembrando-lhe que a existência do conde Stradelli não fora atormentada somente em vida, pois depois de morto seus trabalhos ainda não concluídos ou musicados pelo tabelião Francisco Lima, sofreram com a impertinente perseguição (hipocrisia perinde ac cadáver) de um certo monsenhor Alfredo Miguel Barrat, que se daria ao desplante criminoso de mandar queimar todos os originais dos trabalhos do italiano, inclusive a peça A revolução de Lamalonga, que, como disse acima, ia ou foi musicada pelo seu amigo tabelião Lima, que mo confessou diretamente numa de nossas palestras no café “Leão de Ouro”. Isto escrevi eu às páginas 163 do meu livro Fatos da Literatura amazonense, primeira edição, Manaus, 1976. Não foi somente este o destino que tiveram as obras do conde Stradelli; quando foi fundado o Instituto de Sociologia e Antropologia, de que fora presidente o Dr. André Vidal de Araújo, o antropólogo Dr. Manuel Nunes Pereira encaminhou à diretoria do mesmo Instituto o original do Dicionário Nheengatu-Português, uma obra boa, mas infelizmente inacabada. Naturalmente as pessoas que manipulavam o pacote não o faziam sem certa repugnância, e alguém propôs que o mesmo fosse entregue ao sócio Dr. Manuel Bastos Lira a fim de ser desinfetado. Não posso dizer que fim levou a operação, pois não se falou mais no assunto e ignoro completamente quem ficou por guarda do trabalho, pois o Instituto faliu, por vários motivos, mas o principal deles era a alegação de que situado longe demais, inclusive das linhas de bonde, na Cachoeirinha, ocupando a casa onde fora o Instituto Maria Madalena.

O escritor Luís da Câmara Cascudo interessou-se pela obra do conde Stradelli por via do cientificismo que ela comporta, seja de origem folclórica ou paleontológica, literária ou etnolinguística, variadamente os verbetes dilucidando e informando sobre temas das áreas da botânica, medicina alternativa, astrologia, mitologia, etc.

Sem ser o autor improvisado no desempenho da biobibliografia do conde, embora, como se disse, não houvesse tido conhecimento de certas passagens da sua vida retirada (a ida para Tefé fora uma fuga), ele também não chegou a saber que a própria entrada de Stradelli no Umirizal (local retirado, no bairro de São Raimundo Nonato, onde esteve o hospital para doentes de moléstias contagiosas), fora uma odisseia penosa, a última e resignada peregrinação do homem que viveu uma existência sem prazeres, solitário e infeliz porque tinha a noção de que os outros temiam a sua familiaridade e se afastavam prudentemente.

Não é de surpreender o interesse do escritor pela vida quase monástica do autor do Dicionário, do poema Eiara (em italiano), do mito Jurupari, da ousada interpretação dos petrógrifos do rio Negro (interpretação que ajuizamos temerária), e de outros trabalhos editados na Itália. Câmara Cascudo sabia muito bem da valiosa importância dada ao nome de Stradelli, numa monografia mesmo concisa. O importante aqui não era falar do homem em si como instrumento de um indiofilismo repugnante notório, e sim da obra como fator de requintada conquista da paisagem cultural americana, em que o amazoníndio teve parte saliente como autor passivo, anônimo, inteligente e sabidamente enciclopédico. O livro ganha por isso o tom de mensagem aberta aos porvindouros, sejam professores ou discentes, simpatizantes ou meros peregrinos das leituras ocasionais,            itinerantes viageiros do universo do conhecimento. Nem sempre, porém, o trabalho de Stradelli é produto do seu esforço próprio. Algo tem a ver com a pessoa do jovem Maximiano (max) Roberto (de quem se refere num box à   entrada do livro) ou de Brandão de Amorim, o primeiro não deixando mais do que alguma colaboração identificável na obra do segundo. Isso porque, além do rio Purus, o campo de pesquisas de Stradelli limitou-se aos rios da Madeira, Juruá e Negro, não se demorando no primeiro e dizem que no segundo “arranjando” a moléstia, um purupuru galopante. Creio que esta última notícia seja apenas “lenda” para enfatizar a preocupação    do nobre itálico pela cultura nativa.

Uma derradeira observação sobre a obra de Stradelli, não revista com cuidado por Câmara Cascudo, é a grafia dos nomes indígenas, principalmente da área rionegrina: ele troca o /I/ por /J/, o /U/ por /V/ ou  dos verbetes, e sim uma caça desordenada aos vocábulos, obtidos de pessoas incultas, do tipo mestiço. Assim o leitor pode ler no Dicionário Nheengatu-Português: “tracajá” invés de “taracaiá”, “jaboti” invés de “iabuti”. A própria palavra “nheengatu” está escrita incorretamente, devendo ser “nheencatu”, língua boa e/ou bonita. No caso específico do verbete “tracajá”, Stradelli (ele grava tracaiá) se perde numa classificação sem mérito, fazendo de “tracajá” a fêmea e “tracaiá” o macho, quando na verdade o índio diz “taracaiá apicáua” (macho) e “taracaiá cunhã” (fêmea), pelo   fato de haver os bichos como seus ancestrais. Também oferece a versão “trocana” (tambor monóxilo) invés de “torocano”, palavra mais correta.

Essas divagações que encaminham não deslustram a monografia do Dr. Câmara Cascudo, porém dificultam a compreensão do falar tupi das regiões rionegrinas, solimonenses e madeirenses.

Naturalmente seria desnecessária a crítica acima, e se a aceitamos foi mais por causa do efeito contrário que o mecanismo linguístico acionou ao longo de quase quatro séculos de experiência europeia na Amazônia, com modulações na fala coloquial portuguesa.

Stradelli cometeu o erro, muito criticado em Almeida Garrett, de divulgar os motivos regionais indígenas via composição individual, no caso da lenda manauense Iara (Eiara) em forma poética. Essa atitude está voltando à moda, aqui em Manaus, com as montagens de lendas em língua portuguesa, e forma poemática, em franco desrespeito ao critério antropológico e literário, que exige respeito ao original anônimo e popular. Recomenda-se, portanto, como excepcional na bagagem literária do conde apenas o Dicionário e o mito Jurupari (Iupari) desde já existindo estudo específico do antropólogo Dr. Egon Schaden, não muito convincente para nós outros, porém que deve ser acatado como pioneiro. Ao citar trechos de Eiara e Jurupari, Cascudo parece mover-se na    direção correta de um possível “estado” de emergência ética para diminuir o volume de autoridade da mulher como elemento tribal, passível de ultrajar a confiança do grupo, do “nosso grupo” contra elementos forâneos. Foi  assim que eu vi a situação na “metade” do Tamanduaí, naquele longínquo 1932, situação que descrevo num livro em preparo –Iurupari e seus princípios.

Eu considerava oportuna uma edição comentada da lenda Iara, nos textos originais italianos e na tradução em língua portuguesa, como objeto referencial do que se acaba de informar, uma vez que seria difícil a edição do Dicionário e do Iurupari, pelo volume de ambos.

Uma nova edição da memória precisava ser conhecida. Conhecida e divulgada, uma vez que nada existe   de melhor sobre a vida do nobre italiano do que a pesquisa de gabinete publicada pelo eminente homem de letras do Rio Grande do Norte, para quem a literatura universal não tinha segredos e que sempre divulgou a necessidade de começar-se do popular para o erudito, conforme os trabalhos dados à luz em várias épocas, fora do assunto folclore em que foi mestre erudito, respeitado, citado pelas maiores autoridades do mundo não só como divulgador da cultura, mas também na posição destacada de legislador dos melhores conceitos da    literatura nacional popular.

Foi compreendendo a necessidade de divulgação dos bons trabalhos sobre autores amazonenses ou radicados no  Amazonas, que a Livraria Valer escolheu o opúsculo do Dr. Luís da Câmara Cascudo, sobre Stradelli, a fim de completar o ciclo de conhecimentos biográficos de que carece a juventude que se especializa em literatura e história.

*Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Historiador e folclorista natural de Manaus. Pertenceu à Academia Amazonense de Letras e ao Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA). Texto publicado na Revista do IGHA, 3º trimestre de 2004.

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques