Manaus, 16 de abril de 2024

As relíquias do Marinho

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“Quanto dói essa ignorância feroz que não sabe compreender o valor de uma vida inteira dedicada a cuidar dos seus guardados e das suas relíquias (…).

Todos temos nossos guardados. Entretanto, relíquias de que podemos cuidar para sempre são saudades, tristezas, alegrias, benquerenças e aprendizados que vamos reunindo dentro de nós e carregamos pela vida afora e das quais nem sempre nos damos conta do valor que representam para nossa existência verdadeira, aquela que vai além dessa passagem.

Os guardados, reunidos com esperança de eternidade e que servem para sorvermos no cotidiano também são preciosos e traduzem nosso querer e identidade.

Podem ser variados, desde as coisas mais antigas da vovó, as que trazem relembranças dos tempos da infância, os segredos nos pequenos cadernos com mensagens dos amigos da juventude, como podem ser as coleções que muitos vamos reunindo como verdadeiras joias, em forma de patrimônio.

Há quem reúna de tudo um pouco e transforme o quarto em verdadeiro bazar, a seu gosto. Há os que ampliam estas manias pela casa inteira, guardando e formando coleções, e logo passam a usufruir da alegria da aquisição e da arrumação, e, vez em quando, lembram e contam o que cada peça representa, o momento em que chegaram e quantas e quantas conversas presenciaram com o silêncio respeitoso de quem agradece o acolhimento.

Podem ser livros, discos, filmes, fotos, papeis, cartas, telegramas, selos, moedas, carrinhos, revistas, obras de arte, bilhetes, cartão postal, desenhos, elepês, caixa de fósforo, corujas, copos, sapos, lápis, canetas, troféus, carteira de cigarro, relógios, óculos, jornais, autógrafos, enfim, coisas do arco da velha pelas quais vamos criando afeição tão grande que assumem posição de mando sobre nossas trajetórias.

Com elas falamos de forma franca e livre, contando e recontando o passado do qual nos orgulhamos como se fossem seres vivos a expandir sentimentos.

Eu mesmo, confesso, tenho cá os meus guardados e as minhas relíquias, materiais e imateriais, sentidas no mais profundo de mim. Imagino que você – caro leitor – também tenha as suas, recolhidas com carinho e esperança de eternidade.

O Marinho – José Joaquim Marques Marinho – agitador cultural de qualidade, radialista e advogado, português de nascimento e amazonense de coração, tem sido um desses que seguiu juntando relíquias e guardados por muitos anos.

Deles não fez segredo porque abriu as portas de seu “memorial-residência” para quem quisesse chegar, ouvir boa música, rir à vontade, falar com liberdade e brincar com essa vida como se ela não tivesse fim. Reuniu coisa boa e rara. Daquelas que valem mais ao coração.

Não tem preço que pague, e quando precisamos vender não encontramos quem queira comprar. São tidas como quinquilharia, pelos bobos da corte. Quanto dói essa ignorância feroz que não sabe compreender o valor de uma vida inteira dedicada a cuidar dos seus guardados e das suas relíquias, especialmente as que servem para marcar os tempos e contar passagens de gerações inteiras.

Fiz de tudo, em tempo recorde, para organizar a compra pelo Estado por meio da Secretaria de Cultura das belíssimas coleções do Joaquin, desde quando a família decidiu vender. Levantamentos minuciosos, cadastro peça por peça aos milhares, precificação justa e oficial, relatórios de avaliadores isentos e de alto nível, e não consegui finalizar a compra porque afastado do cargo inesperadamente.

Defini o prédio para instalar todas as coleções; consegui de volta o prédio para o Estado; e mandei fazer o projeto de sua restauração, não só porque o Marinho tem história na terra – o que já bastaria -, mas também porque as coleções valem ouro e dizem de tempos que não voltam e não podem se perder diante dos nossos olhos.

O que tenho lido é que essas preciosidades serão vendidas a retalho por imperiosa necessidade pessoal. Dá pena ver Manaus empobrecer ainda mais.

Nos últimos tempos ele resolveu se desligar do mundo. Fisicamente presente entre nós, decidiu viver desde já entre as estrelas com seu jeito folgazão e menino de ser, sem sentir essa dor profunda.

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