Manaus, 28 de março de 2024

Africanos livres da colônia Itacoatiara

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A segunda colônia da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas – CNCA, chamava-se Itacoatiara, e sua localização ficava nas imediações do lago de Serpa, à margem esquerda do Rio Amazonas. A fundação da Colônia Agroindustrial Itacoatiara na vila de Serpa, data de 1854 (SILVA, 1997), e estava em consonância com a política externa desenvolvida por D. Pedro II, como estratégia de salvaguardar a Amazônia da investida geopolítica dos Estados Unidos da América.

Para que os investimentos na fundação de Colônias, bem como, a  estruturação da navegação a vapor se efetivasse pelo Império Brasileiro, foi necessário, que anos antes (1850) as teorias sobre o determinismo geográfico e ideias racistas que representavam o momento vivido por parte da sociedade norte-americana à época fizessem aparecer no cenário geopolítico latino-americano um plano para ocupar a Amazônia, a ponto de a transformar em um novo Texas. No entanto, para entender esse quadro de pressões e disputa diplomática nas Américas é necessário apresentar o seu arcabouço geopolítico e histórico.

Segundo a historiadora Nílcia Vilela Luz (1965), primeiramente em 1823, o Presidente dos Estados Unidos da América, James Monroe, formulou a doutrina que tem o seu nome: a Doutrina Monroe, pela qual declarou que ficavam vedados empreendimentos coloniais nas Américas. A “América para os Americanos” era o lema de sua doutrina, que pretendia afastar do continente americano os impérios coloniais europeus. Além disso, a partir de 1830, os Estados Unidos da América voltaram-se para a anexação de territórios pertencentes ao México, pelos quais foram à guerra.

Vitoriosos, promoveram a anexação do Texas em 1845, da Califórnia e do Novo México em 1847. O acréscimo territorial possibilitado com a guerra influenciou a sociedade norte-americana a ponto de surgir, em 1850, a “Doutrina do Destino Manifesto”. Sua concepção era no sentido de que os Estados Unidos tinham um destino manifesto, o de dominar o México, o Caribe e a Amazônia. Ou seja, a América do Sul não passava de uma península do território americano. Essa doutrina vinha ao encontro do ideal dos estados do Sul, cujos desentendimentos e animosidades com os estados do Norte já começavam a se manifestar (Guerra da Secessão).

Luz (1965) ainda informa, que influenciando fortemente essa iniciativa do Destino Manifesto1 sobre a Amazônia a partir de 1850, estava alguém aparentemente desprovido de meios para uma agressão à soberania nacional. Entretanto, a persuasão ideológica, o irreversível fim da escravidão, a proximidade da Guerra da Secessão e a estratégia geopolítica dos EUA para a América Latina, possibilitaram a emergência de uma figura controversa, ardilosa, e, suficientemente capaz, de, com sua oratória persuasiva, cauterizar a mente da imprensa, população e principalmente do governo americano.

A práxis da doutrina do Destino Manifesto sobre a Amazônia, teve na figura do tenente da Marinha dos Estados Unidos, Matthew Fontaine Maury2  chefe do Serviço Hidrológico Americano-SHA,  seu apóstolo incansável, a ponto de promover conferências percorrendo vários estados americanos com o fito de influenciar a sociedade, a diplomacia e os governos americano e sul-americanos com relação à navegação no Vale do Amazonas, além disso, organizou duas expedições de exploração – William Lewis Herndon3 e Lardner Gibbon – ao rio Amazonas, sem o consentimento do governo brasileiro, surgindo dessa campanha uma crise diplomática entre o Império Brasileiro e os EUA.

Essa disputa diplomática segue, ante a negativa do governo brasileiro em autorizar a expedição, mesmo assim, em 1851, o Capitão William Lewis Herndon4 recebeu ordens do Congresso Americano para explorar o rio Amazonas a partir dos Andes. Herndon havia sido indicado por seu cunhado, e então comandante e cientista responsável pelo United States Naval Observatory da marinha Matthew Fontaine Maury5. Ambos eram sulistas e preocupados com a tensão crescente entre Norte e Sul que crescia nos Estados Unidos, decidiram procurar por locais onde fosse possível manter a escravidão intacta. Especialmente Maury supunha que a região do Amazonas por situar-se na mesma faixa climática de parte da África, poderia acolher os negros americanos e se transformar numa grande zona produtora de algodão, salvando a atividade econômica escravocrata que, na época, corria riscos nos Estados Unidos (PONKO, 1974).

Junqueira (2007), revela que os verdadeiros propósitos da viagem não foram revelados quando o governo norte-americano pediu permissão ao Império brasileiro para realizar uma expedição de reconhecimento pelo Amazonas. O Congresso dos Estados Unidos aprovou a viagem com objetivos de acrescentar dados ao parco conhecimento que os norte-americanos tinham sobre a região, além disso, confirmar a navegabilidade de alguns dos afluentes do rio Amazonas e identificar as possibilidades de incrementar alguma atividade de agricultura ou outros campos do comércio. Herndon, que estava ancorado no Chile, servindo na esquadra do Pacífico, passou a reunir informações sobre os países andinos, uma vez que a viagem deveria ser realizada a partir do Peru, para em seguida alcançar a parte navegável do Amazonas.

Em 1851, o oficial Lardner Gibbon6 chegou à Lima com detalhadas instruções para a viagem, além de orientação para a coleta de plantas e animais que deveriam ser levados aos Estados Unidos. No percurso de Lima a Belém, a expedição passou por Borba, Manaus, Parintins entre outras. Na chegada a vila de Serpa os exploradores advertem:

The village of Serpa, where we arrived in the afternoon, is situated on the left bank of the Amazon, thirty’miles below the mouth of the Madeira. It is a collection of mud-hovels of about two hundred soulsj built upon a considerable eminence, broken and green with grass, that juts out into the river. There is a point of land just above Serpa, on the opposite side, which, throwing the current off, directs it upon the Serpa point, and makes a strong eddy current for half a mile above the town close in shore (HERDON, William Lewis; GIBBON Lardner, 1854, p 293, grifos nosso).        

A vila de Serpa, onde chegamos à tarde, está situada na margem esquerda da Amazônia, trinta milhas abaixo da foz da Madeira. É uma coleção de casebres de lama de cerca de duzentas almas, construídas sobre uma eminência considerável, quebrada e verde com grama, que se projeta para o rio. Há um ponto de terra logo acima de Serpa, no lado oposto, que, jogando a corrente fora, o direciona para o ponto Serpa e produz uma forte corrente de redemoinho por 800 metros acima da cidade próxima à costa (HERDON, William Lewis GIBBON Lardner, 1854, p 293, grifos nosso).

A exploração dos rios sempre foi a maneira mais viável de se atingir o interior de países considerados desconhecidos ou que fornecessem possibilidades de exploração comercial. Assim sendo, podemos notar que na primeira metade do século XIX, ainda que a marinha de guerra dos Estados Unidos tivesse interesses no Pacífico, por orientação do governo esta instituição voltou-se de maneira surpreendente para a ainda “desconhecida” Amazônia. Esta era a região que procurou reconhecer e estabelecer profícuos contatos com as elites políticas e científicas locais, além de mapear pontos de conexão entre vilas e cidades, com a intenção de desenvolver o comércio norte-americano.

Herndon (1854), desceu o Amazonas realizando o trajeto por barco, mulas e a pé. A região do Amazonas fora considerada por demais isolada e selvagem para que se pudessem erguer ali sociedades nos aristocráticos moldes sulistas norte-americanos. Embora Herndon e Gibbon (1854), não tenham sido bem sucedidos na intenção de localizar locais para transferir os senhores e escravos sulistas7, eles supriram o governo dos Estados Unidos com um número considerável de informações que foram utilizadas durante todo o século XIX e que justificaram plenamente os esforços de pressão diplomáticos sobre o Império do Brasil, no sentido de abertura do Rio Amazonas.

De acordo com Nogueira (1999), o Império vedava o ingresso de navios de bandeira do exterior que adentrassem em águas nacionais. Essa preocupação, em boa parte, era em decorrência da grande extensão territorial da Amazônia, baixo quadro demográfico e mesmo o desconhecimento dominial representado pelo litígio de tratados de limites, entre a Coroa Portuguesa e nações europeias, especialmente Espanha. Essa medida do governo brasileiro não teve ressonância em vários países limítrofes, entre os quais Bolívia, Equador, Peru, Guiana e Venezuela, que juntos investiram pressão sobre o Brasil ao facultarem a livre navegação em seus rios tributários do Amazonas.

Ante a pressão externa, D. Pedro II apressa-se em ordenar a publicação do edital de licitação para exploração da navegação no Amazonas. Pennington (2009) afiança que, com a promulgação do Decreto n. 1.037, de agosto de 1852, pelo Conselho Presidencial do Pará, foi concedido ao Sr. Irineu Evangelista de Souza – Barão de Mauá – o privilégio de instituir no interior da Amazônia, a navegação a vapor, uma vez que se limitava à costa brasileira, até Belém.

A concessão dava-lhe o privilégio exclusivo da exploração da navegação do rio Amazonas por 30 anos, além disso, uma subvenção anual, com a contrapartida de estabelecer linhas regulares entre: a) Belém/Manaus; b) Manaus/Tabatinga (fronteira com o Peru, a ser futuramente prolongado até Iquitos); c) de Belém a Cametá, no rio Tocantins. Ademais, por obrigação contratual compromete-se a estabelecer durante os primeiros anos, seis centros de colonização na Amazônia, com seiscentos colonos europeus cada um.

Santos (1980), reafirma que a Cia. do Amazonas, no contrato com o governo imperial, comprometia-se a instalar na Amazônia colônias de povoamento a partir de 1854. Como meio de ressarcir-se dessa exigência, a Cia. receberia subvenções, favores e privilégios da navegação. Com esse intuito, introduziu 1.061 portugueses no mesmo ano (1854) e depois, 30 chineses. Fundou dois assentamentos humanos na Província do Amazonas, as colônias Mauá e Itacoatiara, uma nas Lages, a 9 milhas a jusante de Manaus, e a segunda na vila de Serpa. A colonização tivera, com efeito, um objetivo não propriamente econômico, mas político, embora um financista como Mauá procurasse, naturalmente, ter sempre em vista as finalidades econômicas. A fraca densidade demográfica da região não a capacitava para um ativo comércio. Contudo, esperava-se poder desenvolver essa capacidade comercial graças à colonização. Teria, esta assim, uma dupla finalidade: a da segurança nacional, mediante o deslocamento de população para o vale que, por isso mesmo, atraía a cobiça internacional, e a econômica, alimentando, neste caso, um comércio que, por falta de produtores e consumidores, estaria fadado a não se desenvolver.

De acordo com o Relatório do Presidente da Província Ângelo Thomaz do Amaral (1857) a Colônia Itacoatiara era considerada adequada para a agricultura, pois suas terras eram descritas como de ótima salubridade, com clima e solo bons para o cultivo de plantas tropicais e intertropicais. Parte destas terras era própria para pastagens e outras para o plantio de café, mandioca, cacau banana e arroz. Também possuía boa vegetação para a construção civil e naval, de marcenaria e tinturaria, plantas medicinais, palmeiras com frutos oleaginosos e que serviam para cordas e tecidos. Outra parte desta colônia foi destinada para a produção industrial: possuía uma serraria e uma olaria movidas a vapor com a finalidade de produzirem tijolos, telhas e madeiras, estabelecimentos que custaram em torno de 50:000$000 réis8.

Em 1855, o Ministro do Império, Luiz Pedreira do Coutto Ferraz, dizia haver em Itacoatiara 173 homens e 8 mulheres, sendo 55 deles oriundos da colônia Mauá. Entre eles estavam os personagens da “noite dos distúrbios” que, descontentes com o diretor da colônia Mauá e com a Companhia do Amazonas, articularam-se para reclamar e se opor às decisões de seus superiores hierárquicos9.

A notícia dos distúrbios chegou ao conhecimento do Ministério do Império que considerou que estas desavenças contribuíam para “o retardo do desenvolvimento da empresa”. De fato, a empresa de colonização não estava somente retardando, mas naufragando. Até este momento a Companhia havia estabelecido somente as colônias Mauá e Itacoatiara, que estavam consumindo muito dos cofres da empresa e não estavam gerando os resultados esperados, por tais razões o Barão de Mauá sugeriu mudanças contratuais para que pudesse aliviar o impacto da colonização nas finanças da Companhia.

A esta altura a colônia Mauá já havia se dissolvido, mas as atividades em Itacoatiara foram mantidas. Em 1857, segundo o presidente da província do Amazonas, Ângelo Thomaz do Amaral (1857), continuavam os trabalhos da serraria, olaria e estaleiro, sendo empregadas duas máquinas a vapor e um forno. Havia também uma plantação de cacaueiro, um pequeno cafezal, mangueiras, algodoeiros e mandiocais. Na estrutura administrativa havia um diretor, um médico, um escrivão, um escriturário, dois administradores (um para olaria e outro para a serraria) e um engenheiro, além de trabalhadores portugueses, africanos livres e chineses.

De acordo com Avé-lallemant (1980), neste período, o Diretor da colônia era Moritz Becher que era engenheiro e oficial alemão, de uma “boa e distinta família”, homem de educação perfeita, morigerado, como é indispensável para a direção duma fundação de elementos os mais heterogêneos”. A serraria e olaria estavam em pleno funcionamento e poderiam dar resultados significantes. Era preciso, no entanto, que as esferas dominantes da capital dessem a devida atenção para que no futuro compensassem as despesas e o trabalho.

Estas informações são confirmadas pelo Relatório do 1.º vice-presidente da Província do Amazonas, Manoel Gomes Corrêa de Miranda, de 185710 o qual cita a configuração espacial e a infraestrutura da Colônia Industrial Itacoatiara. As construções eram de nove casas, três telheiros, uma estrebaria, uma serraria, uma olaria e um estaleiro. Mantinham terreno anexo para agricultura11 extensiva, criação de animais, cuja mão-de-obra era representada por trabalhadores colonos em número de oitenta, sendo vinte e três chineses, vinte e um portugueses e trinta e quatro africanos livres, que chegaram em Serpa no ano de 1857 conforme documento abaixo12.

Fonte: AMAZONAS. Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas em o 1.o de Outubro de 1857, pelo presidente da Província Ângelo Thomaz do Amaral, Rio de Janeiro, Typ. Universal Laemmert, 1858, p. 41- 42.

No mesmo ano de 1857, é informado pelos registros do livro de batismo da Prelazia de Itacoatiara que sete desses africanos livres foram batizados pelo Pe. Francisco de Paula Cavalcanti Albuquerque na Igreja de Nossa Senhora do Rosário atestado pelas certidões de batismo emitidas pela Prelazia de ordem do Bispo Dom José Ionilton Lisboa de Oliveira. Nas referidas certidões (anexo) aparecem os nomes de: Paulo, africano livre, tendo como padrinho Manoel José de Oliveira; Bernardo, africano livre, tendo como padrinho Manoel José de Oliveira; Estevão, Africano livre, tendo como seu padrinho Manoel José de Oliveira; Rodolpho, africano livre, tendo como seu padrinho Manoel José de Oliveira;  Jeremias, africano livre, tendo como seu padrinho, Manoel José de Oliveira; Filizardo, africano livre, tendo como seu padrinho, Manoel José de Oliveira; Augusto, africano livre, tendo como seu padrinho, Manoel José de Oliveira.

Dos 34 africanos livres da Colônia Itacoatiara sabemos pela documentação os nomes de apenas 07: Paulo, Bernardo, Estevão, Rodolpho, Jeremias, Filizardo e Augusto. Todos apenas com o primeiro nome, sem referência de sobrenome. Na época escravos só tinham direito ao primeiro nome. Até o presente momento não foi possível encontrar o nome dos demais. De acordo com Guizelin (2013), os africanos livres da Cia. do Amazonas fizeram parte de uma carga maior de 209 africanos apreendidos num palhabote em 11 de outubro de 1855 na cidade pernambucana de Serinhaém sob cooperação internacional entre governo brasileiro e os governos britânico, português e estadunidense.  Dos que vieram para Serpa, a grande maioria era homem, entre os 21 e 48 anos, servindo nos ofícios de pedreiro, capina e servente, as duas únicas mulheres eram lavadeiras. O comportamento deles era classificado como “mau” ou “péssimo”, além de serem considerados como “turbulentos e dados ao vício de embriaguez”. Eles foram confiados à Cia. de Navegação a fim de servirem na Colônia Itacoatiara para cumprir seu tempo de serviço enquanto aguardavam sua emancipação.

A princípio, o tempo estipulado para serviço antes da emancipação foi de quatorze anos. Mas, conforme demonstra o estudo de Beatriz Mamigonian (2017), no Brasil, os decretos e as leis que previam a repressão e abolição do tráfico deixaram brechas e sofreram mudanças quanto a este tempo, ou seu destino, se seriam reexportados ou ficariam no Brasil. O fato é que muitos destes africanos livres foram “reescravizados” ou nunca chegaram a alcançar a emancipação da tutela do Estado. Eles foram inseridos no mundo do trabalho, compartilhando experiências, mesmo que diversa dos africanos escravos ou libertos.

Após a Lei Eusébio de Queiroz os africanos livres não mais seriam cedidos a particulares, mas empregados em “instituições públicas e de caridade na Corte, além de obras públicas e projetos de fronteiras em várias províncias”, além de “empreendimentos associados ao progresso”, sob a responsabilidade do Estado ou concessionários. É neste contexto que Beatriz Mamigonian (2017), registra a presença dos africanos livres na Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas.

Em 1860, um ano após a visita de Robert Avé-Lallemant, Mauá continuou relatando os resultados ruins da empresa de colonização. As principais causas apontadas eram a cheia do rio e, principalmente, a administração do engenheiro Moritz Becher. Mesmo tendo recebido muitos elogios de Avé-Lallemant, o Barão relatou aos acionistas que Becher havia fornecido ao gerente da empresa em Belém, Manoel Antônio Pimenta Bueno, informações inexatas e documentos falsos para encobrir sua “péssima administração”, ou seja, não se tinha dimensão real dos lucros obtidos pelos trabalhos empreendidos na Colônia neste período.

Descoberto, foi demitido e nomeado o mestre da oficina de máquinas de Belém, Francisco Alves Teixeira. Mauá também recomendou a extinção da colônia, caso os resultados não fossem diferentes, mantendo-se somente o pessoal para “evitar a ruína do material”. Dentre os que ainda residiam na colônia neste período, estavam os chineses e os africanos livres.

Planta da Colônia Agroindustrial Itacoatiara na Vila de Serpa (1864)

Fonte: REIS, Francisco Parahybuna dos. 1864.
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=34654. Acesso em 22/02/2019.

 

Em 1860, conforme o vice-presidente da Província do Amazonas Manoel Miranda, neste período, a colônia encontrava-se num “estado deplorável”, ou seja, com péssimas condições para os trabalhadores. Ele atribuiu à falta de zelo por parte das autoridades de Serpa e os desmandos dos seus diretores, que acarretaram na repetição de desordens, fazendo-se necessária a presença do chefe de polícia ali pela “segunda vez”, para “averiguar os fatos e punir os criminosos14.

Desta averiguação resultou a notícia, em maio de 1860, que o novo diretor da Colônia, Francisco Teixeira, havia dado “algumas lambadas” em um africano por conta das insubordinações ocorridas naquele período e, por isso, foi denunciado por alguns colonos. Contudo, o vice-presidente achou acertado para a “moralidade do estabelecimento e de seus diretores que o corpo de delito que se tinham procedido contra o mesmo Diretor […] não progredisse, visto que se ele a isso tinha sido levado por causa da insubordinação desses.

Apesar de o vice-presidente do Amazonas ter decidido não dar prosseguimento ao corpo de delito contra novo Diretor, estes acontecimentos chegaram ao conhecimento da legação britânica16, que se dirigiu ao Ministério dos Negócios da Justiça chamando atenção para os maus tratos que os africanos livres estavam sofrendo em Itacoatiara. Quando alguns destes mesmos africanos foram mandados para Manaus, acabaram fugindo para Serpa, reclamando novamente de maus tratos. A legação17 fez pedido para que as autoridades do Amazonas entregassem as cartas de emancipações para os que ainda não possuíam, atentando as autoridades para a situação destes africanos.

A direção Teixeira, além de arbitrária em relação aos africanos livres, também não se mostrou eficaz para manter em funcionamento a Colônia Itacoatiara. Em agosto de 1861, Mauá noticiou aos acionistas que ela havia sido arrendada pelo valor de 300$ réis por mês. Em 1862, o relatório de João Martins da Silva Coutinho, encarregado de examinar alguns lugares da Província do Amazonas sob a perspectiva da colonização e navegação, descreveu a situação da antiga Colônia Itacoatiara. Segundo ele, tinha cinco casas cobertas de palha, em mau estado, três de telha, estando uma arruinada, além da serraria e olaria, mas que estavam funcionando e produzindo materiais como tijolos, tábuas de cedro e ripas. Havendo trabalhadores como mestre serrador, maquinistas, operários e serventes. Para Coutinho, estes estabelecimentos apresentavam resultados vantajosos, mas lhes faltava gente para trabalhar já que alguns operários abandonavam a Colônia para irem à extração de borracha, no rio Madeira.

Quando a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas foi transferida à Amazon Steam Navigation Company Limited, em 1871, todos os seus direitos, inclusive as terras concedidas para colonização e a obrigação de aproveitá-las, também foram. Em 1894, Mauá e Itacoatiara continuavam sendo as únicas demarcadas por conta da colonização dos primeiros anos de 1850, havendo moradores que lhes faziam benfeitorias sem nenhum auxílio da companhia inglesa, porém, a empresa os ameaçava de despejo “empregando meios violentos” e exigindo pagamento por arrendamento. Diante desta situação, o governo resolveu considerar que, apesar de ter posse dos títulos destas duas propriedades, a empresa inglesa não tinha o legítimo direito às terras por faltar com as obrigações em relação ao seu povoamento e benefício. Assim, “declarou caduca a concessão de terras a título gratuito transferida à supramencionada empresa18.

Os africanos livres da Colônia Agroindustrial Itacoatiara estão dentre os moradores que permaneceram nas terras da antiga Cia. de Mauá, que estendiam-se até as proximidades do lago de Serpa como atesta o mapa da Cia. cartografado pelo 1º Tenente Francisco Parahybuna dos Reis, comandante do navio Marajó que inaugurou a linha da Cia. de Navegação do Amazonas entre Belém/Manaus  no dia 01/01/1853 tocando nos portos de: Breves, Gurupá, Prainha, Santarém, Vila Bela (Parintins), e Serpa19 . Em 2015, segundo o jornal A Crítica, as pesquisas de Claudemilson Nonato dos Santos de Oliveira e Thyrso Muñoz Araújo foram responsáveis pela produção e envio do dossiê sobre esta comunidade à Fundação Palmares, que concedeu aos moradores dali o título de remanescente de quilombos.

_______________

1 Destino Manifesto foi uma expressão cunhada pelo jornalista John Louis O’Sullivan, em 1845, quando os americanos estavam ocupando o Oeste. Nesse período muitos americanos começaram a acreditar que a virtude dos Estados Unidos era o resultado de seu experimento especial com a liberdade e a democracia (PONKO, 1974)

2Maury endossa e incorpora a ideologia do novo colonialismo e, ao mesmo tempo, será o porta-voz dos interesses do sul dos EUA, região que, em meados do século XIX, entrava na grave crise que conduziria ao aniquilamento da sua sociedade monocultora e escravocrata. Filho do Estado da Virgínia, descendente, pelo lado paterno, de hugenotes franceses e, pelo materno, de ingleses e holandeses, Maury era um misto de cientista, visionário e homem de negócios. Em suas idéias, preocupava-se com o problema dos negros americanos, tendo em vista a proximidade da abolição da escravatura. Convencido da superioridade do branco, só admitia o negro na condição de escravo e nunca na condição de igualdade com os brancos. Os princípios do determinismo geográfico e as doutrinas do “Destino Manifesto” da predestinação divina foram invocados por Maury para explicar e legitimar o destino da Amazônia como uma região a ser povoada por negros escravos norteamericanos. Como tenente da marinha dos EUA e chefe do Serviço Hidrológico Americano, estudou as cartas dos ventos e correntes marinhas, concluindo que, graças às correntes marítimas, uma tora de madeira flutuando no Amazonas seria arrastada para o Caribe, passaria pela foz do Mississipi, atravessaria o estreito da Flórida para alcançar o Gulf-Stream. Estas circunstâncias e a distância relativamente curta que separa a foz do Amazonas do estreito da Flórida levaram-no a considerar a Bacia Amazônica como parte integrante de toda a zona do Caribe e do Golfo do México que, por outro lado, considerava todo esse território pertencente aos EUA. O grande desígnio do tenente Maury era livrar os EUA do elemento negro que ameaçava sua pureza racial, utilizando-o para colonizar e povoar a Amazônia e salvar o instituto da escravidão, deslocando para o grande vale os sulistas com seus escravos. Diante dessa necessidade, convinha, portanto, aos americanos ser os primeiros a conseguir a concessão da navegação no Amazonas e estabelecer sua influência, a fim de anglo-saxonizar a Amazônia brasileira. Maury morreu no México implantando colônias de povoamento para confederados sulistas após a Guerra da Secessão (LUZ, 1968, p. 58-63).

3 HERDON, William Lewis; GIBBON Lardner. Exploration of the Valley of the Amazon.  Robert Armstrong Public Printer: Washington, 1854.

4 Consultar PONKO, Vincent. Herndon-Gibbon expedition to the region of Amazon (1851-1852). Ships, seas and scientists. U. S. naval exploration and discovery in the nineteenth century.Annapolis: Naval Institute Press, 1974.

5 Maury, Matthew Fontaine. The Amazon and the Atlantic slapes of South America. Washington: Franck Taylor, 1853.

6 O relato de Herndon foi contemplado com várias edições e circulou amplamente nos Estados Unidos. Ainda hoje, além de amplamente citado em trabalhos de etnologia e história natural, é visto como uma grande aventura norte-americana do período. Conferir HERNDON, William Lewis. Exploration of the valley of Amazon, 1851-1852. Nova York: Grove Press, 2000.

 7 Após a abolição da escravidão nos Estados Unidos, em 1862, e a partir de um acordo com o Imperador do Brasil, Dom Pedro II, alguns sulistas imigraram para o Brasil. A maioria se dirigiu para São Paulo, o lugar escolhido para a fundação de duas cidades por imigrantes norte-americanos, descontentes com a situação após a Guerra Civil (1861-1865). Tais cidades receberam os nomes de Americana e Santa Bárbara do Oeste. Ver COSTA, Ana Maria Oliveira. O destino (não) manifesto. São Paulo: União Cultural Brasil-Estados Unidos, 1995.

 8 AMAZONAS. Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas em o 1.o de Outubro de 1857, pelo presidente da Província Ângelo Thomaz do Amaral, Rio de Janeiro, Typ. Universal Laemmert, 1858, p. 41- 42.

9 BRASIL. Ministério do Império. Relatório Apresentado pelo ministro do Estado do Império Luiz Pedreira do Coutto Ferraz, Rio de Janeiro, Typ. Nacional, 1856, S1. 28.

[1]0 Na Exposição feita pelo Presidente do Conselho da Província do Amazonas, Herculano Ferreira Pena, de 11 de março de 1855, consta o Decreto n. 1.410, de 8 de julho de 1854, que autoriza a demarcação das terras da Cia. Portanto, as atividades da Colônia Itacoatiara iniciaram nesse ano (1854).

[1]1 Cacau, café, algodão, mandioca, manga, milho e feijão (MIRANDA, M. G. C., 1857), (LOUREIRO, 1989).

 12 Os afro-descendentes da Colônia Agro-Industrial Itacoatiara vivem hoje no Quilombo de Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa (Diário Oficial da União n. 239, de 10 de dezembro de 2014). Os africanos a que se referia o vice-presidente eram os africanos livres. Na primeira metade do século XIX os africanos resgatados nos navios acusados de tráfico – da Inglaterra, Espanha, Portugal e Países Baixos – passaram a ter o status de “livre”, devendo os governos locais supervisioná-los como “criados ou trabalhadores livres” antes que fossem emancipados (MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos livres. 2017, p.33-34).

13 COMPANHIA DO AMAZONAS. Relatório da Companhia do Amazonas, apresentado em 25 de Maio de 1860, pelo presidente da companhia Barão de Mauá, Rio de Janeiro, Typ. Imp. e Const. De Villenueve e Comp., 1860, p. 16.

[1]4 Arquivo Público do Estado do Amazonas, Registro das Correspondências da Secretaria da província do Amazonas para o Ministério do Império. Manuscrito (Cópia), 1855. N. 36, 27 de Abril 1860.

[1]5 Arquivo Público do Amazonas, Registro das Correspondências da Secretaria da província do Amazonas para o Ministério do Império. Manuscrito (Cópia), 1855. N. 40, 11 de Maio 1860.

[1]6 A legação britânica referida tinha por objetivo combater o tráfico ilegal no Brasil, por meio de seus representantes diplomáticos. Cf. MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos livres, 2017, p. 176

 [1]7 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Ao Ministério dos Negócios da Justiça (Manuscrito), 19 de Maio de 1862, Série Justiça, IJ6 469.

18 BRASIL, Decreto n. 4.735 de 7 de junho de 1871: Autoriza a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas a transferir os seus direitos e obrigações do contrato aprovado pelo Decreto n. 1.988, de 10 de Outubro de 1857 a uma companhia estrangeira. e Decreto n. 1794, de 10 de Agosto de 1894: Declara caduca a concessão de terras devolutas de que tratam as cláusulas 10ª e 15ª dos contratos aprovados pelos Decretos n.4.735 de 7 de junho de 1871 e n. 6.826 de 29 de Dezembro de 1877. Cf. Anexo A.

 19 Os afro-descendentes da Colônia Agro-Industrial Itacoatiara vivem hoje no Quilombo de Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa (Diário Oficial da União n. 239, de 10 de dezembro de 2014).

Bibliografia 

SILVA, Francisco Gomes da. Cronografia de Itacoatiara. Manaus: Papyros, 1997

LUZ, Nícia Vilela. A Amazônia para os negros americanos. Rio de Janeiro: Editora Saga, 1968.

JUNQUEIRA, Mary A. Varia História. Belo Horizonte, vol. 23, nº 38: p.334-349, Jul/Dez 2007

PENNINGTON, David.  Manaus e Liverpool : uma ponte marítima centenária – anos finais do Império/meados do século XX . Manaus: EDUA, 2009.

NOGUEIRA, Ricardo José Batista. Amazonas: um estado ribeirinho. Manaus: Edua, 1999.

SANTOS, Roberto. História econômica da Amazônia: 1800-1920. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980.

GUIZELIN, Gilberto da Silva. Comércio de almas e Política Externa – O diretriz Atlântico – Africana da diplomacia imperial brasileira 1822-1856. Londrina: Editora da Universidade Estadual de londrina – Eduel, 2013.

MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017

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