Manaus, 29 de março de 2024

Abrindo covas escuras

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lya luft
*Lya Luft

“0 mundo que nos respeitava nos olha com espanto e pena, ou chacota: a gente não merece isso”

Quando o mar de lama venenosa se espalhou levando de roldão casas, colheitas, gentes e bichos, esperanças, destinos e vidas, escrevi uma coluna (“Rio de lama, rio de lágrimas”) e pintei duas telas: Rio de Lágrimas e Lama e Rio de Lama e Sangue. Pensei, conversei, li, assisti, e ainda não compreendi como isso foi possível – mesmo num país desprotegido e sem governo. Até hoje não vejo os responsáveis por tais crimes fazendo rápida e eficaz ajuda aos inocentes que foram roubados do essencial, das conquistas de sua vida, e do seu futuro – como num país sem lei, onde tudo é permitido.

Então, enquanto ainda olhamos desolados e indignados essa imundície que agora contamina o oceano, nova torrente de lama, desta vez uma onda de lama moral, explode e nos revela coisas antes impensáveis: figuras importantes, importantíssimas, têm expostos seus crimes que nos levaram à condição em que estamos: miséria, desemprego e dívidas. Por outro lado, abrem-se, por obra da Justiça, que nos traz um sopro de claridade, as escuras covas onde se teceram todas as tramas que levaram o Brasil, e cada brasileiro, à trágica situação atual. Que novos nomes, novas figuras, vão ainda emergir, ser presos, processados, possivelmente condenados a muitos anos de prisão mesmo assim sem poder compensar os gravíssimos danos e os abalos feitos à pátria e aos brasileiros? Quem sabe se encolhe e emudece.

Demasiadas coisas belas, aparentemente sólidas e boas, se esfacelaram atingidas pelo crime, pelo cinismo, ou, como tão bem disse a ministra Cármen Lúcia, pelo escárnio. Onde, em que momento, com que voto errado, desinteresse ou ignorância, se não ingenuidade, perdemos aquele Brasil que a gente amava, ao qual devotamos a vida, nós, comuns mortais, que trabalhamos, pagamos contas, estudamos, nos preocupamos, criamos nossa família, exercemos profissões das mais simples às mais sofisticadas? E como os que sabiam não abriram as janelas de sua mansão gritando ao mundo tamanhas infâmias que agora a Justiça descobre, expõe e – esperemos – condena com a maior e mais corajosa eficiência? Precisamos disso, diante de tudo o que vemos com olhos estupefatos, bocas abertas, punhos fechados, porque estamos dominados por incredulidade, ira e dor; todos nós de alguma forma atingidos.

Ê urgente, pois o tempo é curto, segundo especialistas, encontrar nomes honrados, lúcidos e unidos, com nova postura e pensamento, que tentem recuperar a saúde deste país tão enfermo. Precisamos de governo e coragem de projeto real e imediato, para sair destas areias movediças. Como um adicto grave que, antes de se libertar dos efeitos das drogas e do álcool, conhece os horrores do inferno, e algumas vezes emerge transformado, será preciso no Brasil um choque, uma mudança funda, radical, sofrida, para que se abra o caminho da recuperação. Sofrendo estamos, em choque estamos, traídos e enfurecidos estamos.

Remover de seus altos postos os que fizeram tantos males, encontrar lideres corajosos e brilhantes porque não podemos mais errar, é agora uma gigantesca tarefa. Que venham pessoas responsáveis em lugar dos criminosos, e talvez para isso a gente deva protestar, exigir, manifestar-se firme mas pacificamente, e sem ilusões com promessas carnavalescas de uma falsa alegria que é véspera de mais sofrimento. Somos uma nação, não um bando de alegres meninos construindo castelos de areia, ou de adolescentes com ideais aventurescos que fazem parte de sua idade e natureza, e que contemplamos com afeto e entendimento. O mundo que nos respeitava nos olha com espanto e pena, ou chacota: a gente não merece isso.

Que nos ajudem os deuses e a nossa determinação; que a justiça prevaleça, as teias malignas sejam rasgadas, as covas encontradas e destruídas, e a pequena esperança do momento se transforme num Brasil pelo qual valha a pena lutar, trabalhar, ser honesto, e do qual um dia a gente volte a se orgulhar. Não é fácil. Aqui não cabem ingenuidade e ilusão: não é coisa para vítimas, mas para heróis.

*Escritora. Articulista da Revista Veja. Texto na edição 2455, de 9/12/2015.

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