Manaus, 29 de março de 2024

Vidas secas no Sudeste

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(Entrevista com Carlos Nobre ao repórter Felipe Carneiro – Revista Veja nº 2396, de 22/10/2014).

O climatologista diz que, embora não seja possível prever o fim da seca nessa região, os brasileiros devem se preparar para uma forte mudança nos padrões das estações do ano 

Em sua longa trajetória como climatologista no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o paulistano Carlos Nobre sempre se diferenciou por entender os fenômenos de maneira abrangente, muito além dos modelos meteorológicos.  Atualmente, trabalha no Ministério da Ciência e Tecnologia e é membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), da ONU, razão pela qual se diz ganhador do Nobel da Paz de 2007.  “As mudanças climáticas são uma ameaça à segurança mundial, pois causam quebra de safras, migrações em massa e guerras”, explica.  Da Inglaterra, onde esteve para ministrar uma palestra sobre o futuro da Amazônia no University College de Londres, Nobre falou a VEJA.

O reservatório da Cantareira, que abastece 8 milhões de moradores do Sudeste, está com apenas 4% de sua capacidade.  No Rio de Janeiro, o fogo se espalha pela região serrana.  Quando essa seca vai acabar?  Não há como prever.  O que posso dizer é que, infelizmente, os meses de setembro e outubro estão mais secos que a média histórica.  Como são meses de transição para a estação das chuvas, isso não é um bom sinal.  Mas também não significa que novembro terá o mesmo perfil.  Para 2015, não há elementos científicos suficientes para dizer se o ano será muito árido ou não.  Se for, o impacto será devastador.

Com tantos cientistas debruçados sobre o assunto no Brasil, como justificar tanta imprevisibilidade?

Sabemos o que aconteceu, mas desconhecemos as suas causas.  Às vezes, passam-se anos até que se consiga saber o porquê de um fenômeno.  Sem essa informação, também não é possível responder se a estiagem vai ou não se repetir.  Como os últimos dois anos foram muito áridos no Nordeste, criamos, em novembro do ano passado, um grupo de trabalho com alguns dos mais importantes climatologistas do Brasil para melhorar as previsões meteorológicas.  Não enxergamos nos ventos, na temperatura ou na pressão no Atlântico ou no Pacífico nenhum sinal que pudesse prever a estiagem no Sudeste.  Mesmo depois de a seca se estabelecer, voltando a estudar os modelos computacionais, verificamos que nenhum deles dava indício do que acabou acontecendo.  As previsões no Sudeste sempre foram mais complicadas.  Enquanto no Nordeste o clima depende muito do que se passa nos oceanos Atlântico e Pacífico, no Sudeste a lógica é caótica.  É quase impossível decifrar sinais precursores e desenhar o cenário mais possível.
O que se sabe, então, sobre a seca no Sudeste?

A estação do inverno normalmente é um período de pouca chuva na área entre o Paraná, a Bahia e o sul da Amazônia.  Nessa época, um sistema de alta pressão atmosférica que vem do oceano impede que as frentes frias tragam a umidade do Sul.  Muito atipicamente, esse quadro aconteceu durante o verão, de janeiro a março.  Esse sistema seco e de alta pressão ficou parado por ali, barrando as nuvens e provocando a seca.  Uma das consequências é que tivemos um mês de fevereiro muito quente.  Quando esse sistema arrefeceu, em abril, a temporada de chuvas já havia acabado.


É possível pôr a culpa no aquecimento global? 

O planeta está mais quente e há mais vapor de água na atmosfera.  É um fato.  Então, a probabilidade de ter nuvens, tempestades e ventanias aumenta.  Nos anos em que não há chuvas demais, prevalece o cenário oposto.  Vai-se então de um extremo a outro.  Na Amazônia, há uma alternância de secas e inundações desde 2005, quando aconteceu a maior estiagem até então.  Em 2010 o quadro foi ainda mais severo.  Mas em 2009 a região viveu uma inundação recorde, que foi quebrado pelo excesso de chuvas de 2012, e novamente em 2014.  Em dez anos, a Amazônia teve as duas mais intensas estiagens e também as três piores inundações.  De acordo com as conclusões do IPCC, da ONU, essa variabilidade maior entre extremos é provavelmente fruto do aquecimento global.  Sobre o que está acontecendo em São Paulo e na região da Cantareira, contudo, prefiro ser mais cauteloso.

Por quê?

Há outras complicações.  Em anos anteriores, em São Paulo ocorreram chuvas muito intensas, que causaram inundações três vezes mais frequentes do que há setenta ou oitenta anos.  A temperatura média na cidade está de 2 a 4 graus mais alta do que no início do século passado.  A causa mais provável dessa alteração no microclima de São Paulo é a urbanização.  Com a troca radical de vegetação por asfalto e concreto, São Paulo se tornou uma ilha de calor.  O aumento de 30% na média anual de chuvas na cidade nesse período se deveu à elevação da temperatura.  Nasci e vivi em São Paulo até os 17 anos.  Eu me lembro da inundação no Mercado Municipal pelo transbordamento das águas do Rio Tamanduateí.  Foi marcante por ser um evento raro.  Atualmente isso vinha acontecendo duas ou três vezes por ano.  É preciso estudar se o regime de chuvas alterado na área urbana de São Paulo tem relação com a estiagem na região da Cantareira.

O Brasil deixou de ser menos exposto a desastres naturais em comparação a outros países, como se costumava acreditar?  Existia aqui uma crença de que o Brasil era um país abençoado por Deus.  Falava-se com orgulho que não havia furacão, terremoto nem nevasca.  Era enrolação sem base na realidade.  O Brasil sempre foi um país muito afetado por chuvas intensas, torrenciais, deslizamentos de terra e secas muito pronunciadas no Nordeste.  A tragédia na região serrana do Rio de Janeiro, em 2011, acabou cora essa falsa ideia.  A morte de mais de 900 pessoas naquele episódio forçou uma mudança de paradigma.  Hoje não há dúvida de que o Brasil é um país propenso a desastres naturais e que é preciso ter uma política pública para diminuir a vulnerabilidade da população e das atividades econômicas.

A seca no Sudeste também está ajudando a derrubar esse antigo mito?  O que a escassez está fazendo agora é sepultar outro mito: o de que o Brasil é um país com muita água.  Dizia-se que o país tinha uma das maiores disponibilidades hídricas do mundo, embora com alguns desequilíbrios no Nordeste, mais seco.  Não é verdade.  Na média, está correto dizer que no Brasil há muita água, mas ela está mais concentrada na Amazônia.  Esse não é um recurso distribuído igualmente em todo o território.  A seca no Sudeste, então, deve servir de aprendizado.  É preciso que todos entendam que a água é um bem escasso em muitas áreas do Brasil.

Como a estiagem poderia ser contornada?

Talvez seja necessário que ocorra valorização econômica da água, que hoje custa muito pouco.  Por ser tão barata, a água sempre foi desperdiçada e nunca houve incentivo para elevar a eficiência de seu uso.  Um aumento de preço mudaria esse comportamento.  Também será preciso redimensionar; os reservatórios de água e investir mais nessa área.  Não se sabe quanto tempo esse quadro adverso de seca vai durar, mas com certeza absoluta ele vai se repetir com mais frequência.  Será imperativo guardar o excesso de água em uma estação para dispor de reservas no ano seguinte.  Não há um cenário apocalíptico no horizonte, com falta de água expulsando as pessoas de grandes cidades ou escassez de comida, mas é certo que haverá outros anos de seca.  Talvez dois ou três, em sequência.  Até mais.  Por isso, temos de nos preparar.  Entre as soluções mais óbvias estão aumentar o número de reservatórios, buscar outras fontes de água, incentivar o reuso e desperdiçar menos.  Em Israel e na Alemanha, o esgoto é tratado e a água limpa é lançada de volta aos reservatórios.

Além desses, há outros exemplos no mundo que poderiam ser copiados?

Um bom caso é o de Nova York.  O sistema de lá capta água para o consumo humano a mais de 200 quilômetros de distância, nas montanhas a noroeste da cidade, na fronteira com o Canadá.  Em tese, os americanos não precisariam fazer isso agora.  Mas eles estão levando em conta que o aumento da temperatura no verão significará maior evaporação das suas fontes.  Então começaram a fazer hoje aquilo que só seria necessário daqui a cinquenta anos.

A tecnologia tem permitido que a agricultura brasileira sofra menos com a seca?

As plantações irrigadas são menos atingidas, mas a maior parte da agricultura ainda depende da chuva.  Ao olhar os números nacionais, o impacto não parece tão grande.  Como o Brasil é muito extenso e tem uma agricultura bastante diversificada em todas as regiões, existe sempre uma compensação.  Não há um fenômeno único capaz de atingir todo o território.  No Sul e no Nordeste, por exemplo, a seca não foi muito pronunciada.  Quando se olha apenas para o Sudeste, contudo, é inegável que o efeito foi grande.  A produção de cana, que depende muito das chuvas de verão, registrou perdas.
De que maneira os produtores rurais poderio se proteger no futuro? 

É necessário um novo zoneamento agrícola, que respeite os caprichos do clima.  Antes de plantar, será preciso estudar o que acontecerá com aquela região dali em diante.  Também será necessário desenvolver espécies mais resistentes a secas e a altas temperaturas.  Dessa maneira, seria possível evitar que ondas de calor causassem a ruptura de colheitas inteiras.  A Embrapa já tem um belo histórico nisso e continua trabalhando em novas espécies.  Normalmente, a solução de fortalecer a planta reduz sua produtividade.  Sua energia é desviada para torná-la mais resistente, e a planta, ao final, acaba tendo menos frutos ou crescendo menos.  Esse é um balanço que tem de ser alcançado ou o Brasil sofrerá muito no futuro próximo.  A boa notícia é que o agricultor está mais atento a essas flutuações do que outros setores da sociedade.  Ele sente isso na pele.  Essa é uma área que já está se adaptando.

Essas alterações também provocarão mudanças na vegetação nativa?

Até o fim do século, existe, sim, essa possibilidade.  Os estudos indicam que muitas espécies do Cerrado migrarão para o Sul.  A mesma coisa deve acontecer com espécies da Mata Atlântica.  Daqui a cinquenta ou 100 anos, áreas de Mato Grosso do Sul e do Paraná terão um novo clima, mais propício a espécies do Cerrado e da Mata Atlântica.  O Rio Grande do Sul poderá ficar mais parecido com São Paulo em termos de vegetação.  Em Santa Catarina, a estação fria de inverno ficará mais amena.  Em trinta ou quarenta anos, Santa Catarina vai se tornar um grande produtor de frutas tropicais.  Na Amazônia, o impacto será maior.  Muitas regiões poderão não ter mais florestas.  Ficarão quentes demais, com uma estação de seca mais pronunciada.  Ao sul e ao leste da floresta, há tendência de aparecimento de savanas.

Os brasileiros aprendem na escola a classificar regiões do Brasil de acordo com o clima.  Esse mapa caducou?

Não resta dúvida de que o clima está mudando e que os livros didáticos precisam ser revistos.  O que está em curso é uma tropicalização das regiões consideradas subtropicais, que perdem o prefixo “sub”.  Em vez de quatro, elas terão praticamente duas estações: o verão, mais quente e seco, e o inverno, chuvoso e frio.  As estatísticas mostram que, nas regiões consideradas como subtropicais — o Estado de São Paulo, parte do Centro-Oeste e do Sul —, os meses mais quentes do ano eram janeiro e fevereiro.  No futuro, deverão ser outubro e novembro.

Os últimos dias em São Paulo e no Rio de Janeiro foram especialmente de muito calor.  Isso é resultado dessa tropicalização?

Exatamente.  Muitas vezes os recordes de temperatura no Sudeste estão sendo registrados em outubro e novembro.  Esse é o momento em que estaríamos saindo do inverno e entrando na primavera.  Esses dias, que também são mais secos, atrasam o início da estação chuvosa.  A tendência é de que essa seja a regra no futuro.

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