Manaus, 28 de março de 2024

Uma chance para a escola avançar

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*Maria Clara Vieira

Durante décadas o Brasil deu as costas à experiência internacional e rejeitou a ideia de uma base nacional que definisse o que todas as escolas deveriam ensinar. 

Currículos de alto nível têm ajudado a alçar países ao topo dos rankings.

O que um calhamaço de 396 páginas intitulado Base Nacional Comum Curricular, mais conhecido pela pouco sonora sigla BNCC, tem a ver com a vida de gente de fora das rodas educacionais? Tudo. O documento, divulgado pelo Ministério da Educação (MEC) na quinta-feira 6, é o primeiro a estabelecer no Brasil um único roteiro acadêmico para todas as 190000 escolas públicas e particulares. Roteiro mesmo: ali está explicado o que as crianças terão de aprender ano a ano, matéria por matéria, do ensino infantil ao fim do fundamental (o currículo do ensino médio virá depois). Soa básico, mas durante décadas o país deu as costas à experiência internacional (sim, as nações boas de educação têm metas muito claras para a sala de aula) e rejeitou a ideia de um guia nacional que determinasse objetivos de aprendizado. Argumentava-se que a liberdade do professor seria aniquilada e as diferenças regionais, esmagadas. O mundo mostra que não. Currículos de alto nível têm ajudado a alçar países ao topo dos rankings. O Brasil, portanto, ganhou uma chance.

A implantação disso tudo é de enorme complexidade e dela dependerá o sucesso da empreitada. Até hoje, colégios e professores seguiam a trilha que julgavam melhor, norteados pela bússola de provas como o Enem, ou acompanhavam o currículo de suas redes públicas, quando existia um. Agora terão de se reorganizar por completo, para adequar-se às mudanças que serão exigi das por lei a partir de 2019. É tempo não só para se desenrolar um trâmite que passa pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e pela homologação do próprio MEC, mas também para reescrever livros didáticos e treinar professores de acordo com as novas diretrizes. Uma pesquisa nacional, encomendada pela Fundação Lemann ao Ibope, mostra que o clima entre os docentes é favorável: 98% concordam que saber o que o aluno deve aprender vai ajudá-los.

O documento que o MEC trouxe a público eliminou várias aberrações que as versões preliminares continham. A primeira versão, apresentada em setembro de 2015, na gestão do ministro petista Renato Janine Ribeiro, bania das aulas de história tudo sobre Grécia Antiga, Renascimento e a formação dos Estados modernos. Também não fazia menção à gramática e, em matemática, reservava quase metade do tempo às chamadas “abordagens regionais”. Felizmente, a ideia evaporou. A versão número 2, anunciada oito meses depois, avançou, mas continuava a ser um amontoado de conteúdos apresentados sem sequência lógica e era

repleta de clichês pedagógicos. A base atual corrigiu esses problemas (embora o eduquês continue lá). “O encadeamento lógico das matérias, que vão subindo de dificuldade de forma organizada, é o motor de um bom currículo. Essa lição o MEC fez”, avalia a pesquisadora Ilona Becskeházy.

Países com currículos avançados têm prestado atenção em dois itens que conversam com a cartilha do século XXI. Um deles é a concisão: o ensino enciclopédico cede lugar a um modelo com menos itens e mais densidade – O Japão, por exemplo, passou a navalha em 30% do conteúdo em prol de um mergulho mais aprofundado no que restou.

Nesse terreno, especialistas ouvidos por VEJA concordam que o roteiro das matérias não ficou sobrecarregado. Outro ponto que une bons currículos, como os da Austrália e da Finlândia, é a inclusão das chamadas habilidades socioemocionais, como raciocínio lógico, capacidade de resolver problemas e de fazer uma boa argumentação. A base curricular brasileira insiste nesses tópicos. “O documento estimula um aprendizado em que o aluno passa a ter papel mais ativo”, diz Denis Mizne, diretor executivo da Fundação Lemann e um dos articuladores do Movimento pela Base, que desde 2013 reúne acadêmicos e organizações para discutir o tema e levar propostas ao MEC.

A expectativa é que até o fim do ano o CNE devolva a base curricular ao ministério, que então baterá o derradeiro martelo. Espera-se que nesse período algumas falhas ainda presentes possam ser corrigidas. Uma delas é a vaga menção à tecnologia, fundamental não apenas por ser a nova linguagem universal, como pelo empurrão que pode dar ao ensino. No capítulo de ciências, a palavra não é sequer mencionada. “As novas gerações devem aprender como fazer uso da tecnologia para tornar mais rica a investigação científica”, diz Paulo Blikstein, brasileiro que coordena um laboratório voltado para estudos sobre o ensino de ciências e tecnologia na Universidade de Stanford, na Califórnia. “Quando a base faz menção à tecnologia tende a mostrar uma visão ingênua. Debate seu impacto de forma pouco sofisticada e até negativa”, diz.

No geral, o documento revela que a ambição acadêmica aumentou em relação ao que é normalmente praticado nas salas de aula do país (veja exemplos na pág. 64). Hoje, a maior parte das escolas, em especial as públicas, não tem um plano para o desenvolvimento da criança do ensino infantil (até 5 anos de idade). Agora elas terão. A alfabetização, por sua vez, passará a ser obrigatória até o 2° ano (hoje é até o 39), como acontece em países avançados no ensino. Nesse tópico, porém, cabe uma ressalva. “Falta incorporar o que a ciência cognitiva já descobriu”, afirma João Batista Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto. São aprimoramentos ainda possíveis. “A base é um instrumento que deve ser lapidado e atualizado, como ocorre em outros países”, diz Maria Helena Guimarães, secretária executiva do MEC. A atual versão passou por cinquenta leitores críticos, brasileiros e estrangeiros.

Não é uma questão semântica chamar o atual documento de base curricular e não currículo. Uma base determina o que ensinar, mas não como o conteúdo deve ser transmitido ao aluno. Esta, sim, é a proposta de um currículo. Com a base, cada escola ou rede pública de ensino tem a liberdade de seguir os objetivos nacionais à sua maneira, pesando suas específícidades e escolhendo seus métodos. Faz sentido do ponto de vista prático, já que a histórica resistência a um currículo poderia inviabilizar qualquer ação. Nos Estados Unidos, que adotaram uma base, o Common Core, em 2010, a implantação foi cheia de tropeços, mas a qualidade está melhorando. É disso que o Brasil precisa.

*Jornalista. Em parceria com e Monica Weinberg. Matéria na Revista Veja, Edição nº 2525 de 12/04/2017.

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