Manaus, 29 de março de 2024

Teatro: 120 anos

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Os barões do látex mal podiam imaginar que estavam vivendo uma experiência mítica, mais uma dentre as muitas experimentadas pela Amazônia.

O Teatro Amazonas ficou como monumento àquela época inigualável. Como membro da gang da Praça São Sebastião nos idos de 50, o Teatro era o nosso castelo. Conhecíamos todos os meandros do edifício, dos urdimentos de madeira da cúpula aos camarins com seus móveis art-nauveau. Nem ligávamos em saber quais divas havia ali vestido seus figurinos, ou aos romances clandestinos que aconteceram nos camarotes. O universo infantil ainda não abarcava essas outras fantasias a cujo combustível eram os hormônios que viriam a seguir. Por isso posso dizer que sou frequentador antigo deste monumento. Confesso que hoje, visto em perspectiva, me parece estranho ter brincado ali. É como ter sido moleque no mesmo espaço onde ocorriam rituais exóticos. Era como ter brincado na pirâmide de Queops ou no Taj-Mahal. Por isso mesmo é melhor não aprofundar muito esta questão. O certo é que vi muitas coisas acontecerem no Teatro Amazonas. Inclusive teatro, às vezes dança e música. Foi no palco que assisti a montagem original de “O Boca de Ouro”, de Nelson Rodrigues, e vi a grande Margot Fountayn (foto) se despedir das sapatilhas, dançando uma memorável “Floresta Amazônica”, de Villa Lobos, com coreografia de Frederick Ashton, do Royal Ballet. Nos tempos da decadência, quando Manaus vivia a sua suntuosa pobreza à margem do Brasil, o Teatro Amazonas era quase exclusivamente ocupado por valores locais, artistas da cidade letárgica na tentativa de despertar alguma emoção mais forte. Ao pensar naquela época, lembro-me imediatamente do “Conjunto de Camara Orpheus”, um trio de cordas e piano, animado pelo Or. Pedro Bacelar, um apaixonado violinista. “O Conjunto de Camara Orpheus” propiciou-me o primeiro contato ao vivo com a música erudita. Eram programas bastante românticos, com muita música do século XIX. Podem ter certeza que eu assistia tudo com grande interesse, e até hoje sei quando um músico é bom ou medíocre pelos parâmetros que herdei do trio do Dr. Bacelar. Mas vocês sabem como funciona a maldade provinciana! O “Orpheus” fazia uns dois concertos por ano, os custos – que deviam ser razoáveis -, eram bancados pelo Dr. Bacelar. Partituras, afinações, ensaios, instrumentos bem conservados, tudo isto era providenciado sem que se falasse de financiamento oficial, de apoio governamental ou patrocínio cultural. Mas a língua dos manuaras não perdoava: gente calejada pela crise econômica, as récitas do “Orpheus” eram consideradas obrigações sociais. As pessoas iam porque não era de bom tom deixar de frequentar uma noite de arte no Teatro Amazonas. Infelizmente não havia cultura musical e os programas bem escolhidos do trio acabavam por se transformar em suplício. E aos primeiros acordes do Dr. Bacelar, boa parte do Teatro Amazonas caia no sono e alguns ressonavam despudoradamente.

E o trio logo ganhou um apelido, agora era o “Conjunto de Cama Morpheus”, porque nocauteava até mesmo os mais empedernidos insones. Mas faça-se justiça ao Dr. Bacellar e seu conjunto heroico. As cordas eram de qualidade, e o repertório não buscava a facilidade. Algumas coisas de Beethovem eles faziam muito bem. E me deixaram para sempre apaixonado pelas sonatas desse alemão surdo. Mas se os artistas locais nunca deixaram cair a bandeira da arte nos palcos do Teatro Amazonas, evitando que se tornasse um simples monumento, há outro motivo para comemorar-se largamente esses 120 anos como se fosse realmente de uma autêntica casa de óperas. Não, não me refiro a montagens de óperas. Isto, pelo menos em minha infância não aconteceu. O nosso Festival de Óperas ainda estava num distante futuro, sequer era um sonho.

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