Manaus, 19 de abril de 2024

Salve amigo Jorge!

Compartilhe nas redes:

Não leitor. Não pense que estou me referindo a Jorge, aquele santo, militar romano que, manobrando habilmente seu cavalo, massacra simbolicamente, o dragão das nossas fragilidades e fobias, com a força e a determinação do pensamento positivo, apoiados em golpes certeiros e mortais, desferidos de sua lança pontiaguda e mágica, no tempo antigo, derrotando as incoerências do ser humano, assim descritas e que, em quadros da História, ornamentam nossos lares, nas paredes e calendários, nos quais o demo do negativismo cospe aquelas línguas imensas de chamas, que faziam-nos amarelar de tanto medo, na infância. Porém ele era um líder religioso de nosso tempo.

Fazendo uma viagem nas memórias, lembro-me da época de menino, que começava a entender a vida dos mártires através da Semana Santa, ou nos filmes que passavam sobre o maior deles, Jesus de Nazareth, na qual nem os passarinhos “cantavam”, talvez, guardando respeito aos dias e ao jejum, em que um grande silêncio dominava o ambiente e nuvens carregadas, cobriam o céu. Era um cenário bucólico, sóbrio.

Ficava revoltado de ver Cristo sofrer tantas injustiças daquele jeito, mas não podia fazer nada, voltando triste e amargurado pelas ruas abandonadas e escuras, altas horas, para casa. E este homem, pelas suas posições, quantas vezes não tentaram enxovalhar sua honra e a da Igreja.

Na quinta-feira então, nem se fala, tremia de medo que nem vara verde na correnteza, porque os mais idosos nos contavam que a Procissão das Almas iria passar por determinadas ruas com a matraca e parariam na residência de alguns pecadores – e, eu, daquele tamanho, mas em plena consciência que, mesmo tímido, tinha uma paulada nas costas e bem cabeludos -, geralmente, coincidindo nas vias onde a iluminação era precária. Daí que, mesmo com as promessas, o coração em pedaços e a consciência pesada, minha vida e a de meus nove irmãos, naqueles instantes da noite, transformava-se num verdadeiro deus nos acuda e cada um por si, rezando naquelas horas, em que qualquer ruído ou sombra era um suplício, ainda mais complementado pelo canto da rasga-mortalha. Nem vou contar o resto, pois só de falar, fico igual a cor dum catterpilar… Era de arrepiar.

Mas foi naquele  65, na era de chumbo, que o conheci. Falava-se muito em revolução… Ele era branco, mas só ficava vermelho quando balbuciava em Português, a gíria da nossa tribo “ora já”, querendo dizer olha já.  Ainda não fumava, usava óculos do tipo fundo de garrafa, mas fazia a alegria da gente, esquiando pelo Rio Amazonas, em frente à cidade, ora para cima, ora para baixo, puxado por um cabo de nylon fixado na rabeta de uma voadeira.

Período em que havia um ditado do governo do Tio Sam, aquele da “América para os americanos” em que saboreávamos fritinhos com leite que, após ingeridos, nos provocava uma tremenda leseira baré, do programa Aliança para o Progresso. Às vezes o Virgílio, o Aldo, o Zeca e cia., quando uma libanesa encarregada de distribuir tais doações dava sopa, subtraiam mais leite, trigo e fubá que ingeriam, e à noite o pessoal se deleitava, isto quando ninguém baixava no hospital empaixado.

Após muitas releituras é que compreendi que o objetivo deste agrado norte-americano, era o de combater o comunismo que estava se alastrando na América Latina no qual um dos hinos era o seguinte: A minha alegria é só de Jesus… Principalmente quando o FBI descobriu que um tal Dr. Ernesto andou por Itacoatiara clinicando no SESP – Serviço Especial de Saúde Pública.

Eram jovens que vieram de um país distante, nas santas missões, para salvar o Brasil, segundo a ideologia yanque, pois a foice e o martelo representavam o bicho feio, que ninguém sabia o que era realmente. A época era a da Guerra Fria.

Aquele quase menino  que utilizava lambreta e, às vezes, andava de bicicleta, nos chamava a atenção, mas magrinho que nem só, pulava que nem bode na chuva, como dizia minha avó, mas gostávamos dele, embora se queixasse de receber dezenas de bicudas na canela. Jogava sempre de batina e sapatos pretos, e por dever de ofício, não deixava o hábito. Era um prazer jogar futebol com ele, mesmo contra ou a favor, só tinha uma falha, pois falava todo enrolado e que comentávamos que ele chamava Jesus, de Geraldo. Depois ía dando cacholetas nas orelhas daqueles que não corriam, é claro!

O diacho do divino homem era bom, mas também não se deixava rogar quando pulávamos o seu quintal para usufruir de algumas mangas e gobirabas. Ah!… como ele corria atrás da meninada, quando não mandava o Domingão, e nós pulávamos para o terreno da Escola  Coronel Cruz… e é pela cruz que se salva.

Parece-me que, quando a ditadura pediu a cabeça de Hadad – ah!  padre  pai d’égua –  desse eu recordo bem, porque em meio a repressão fez a cabeça de nossa geração, com fundamentos filosóficos. Nesse período ele já tinha voltado para seu povo, talvez, pensando que o Canadá ainda fosse sua terra. Creio que as lembranças, a saudade da pátria logo adotada, bateram grande em seu peito. E não é que ele voltou.

Todavia as experiências na convivência diária com os humildes e oprimidos, o tenha convencido a mudar a concepção tradicionalista, recebida e reforçada no primeiro mundo.

Nas estradas empoeiradas da vida, fizemos muitas viagens ao seu lado, em uma velha Toyota ou em barcos, rio abaixo, para palestras nos municípios, em congressos e seminários da juventude interiorana. Lá, conheci e comecei a exercitar os termos ajuri, mutirão, solidariedade…

Defensor da justiça social, da reforma agrária, dos excluídos e da distribuição de renda no país, ele representava uma determinada liderança na Amazônia, autoridade de reconhecida posição e notório saber, acumulados ao longo do tempo e que não pode ser excluído dos debates fora dela.

Escrevo este artigo com lágrimas no coração por que ele era um dos últimos cavaleiros que alimentava nossa esperança e nosso sonho (…) que, ao lado do angélico Evaristo Arns, do destemido Casaldáliga, do corajoso Moacir Grecchi, do imponente Aldo Mogiano, do poético Frei Betto e do filosófico Boff, enfrentaram a ditadura e viveram, na prática, a vida em Cristo, traduzidos em realidade na Teologia da Libertação.

Nas tantas aflições, quantas vezes mandaram procurar o bispo… E ele é Dom Jorge Marskel, da Prelazia, do povo e de Deus, que ajudou a construir na fé, uma Igreja presente e verdadeira.

Salve! Dom Jorge Guerreiro, nos caminhos e descaminhos da vida,  quantas vezes nos ensinou  com sua calma tão serena quanto a relva, o verdadeiro sentido da palavra Liberdade,  nesta parte da América  que mais parece uma latrina do mundo.

Volta mais uma vez, companheiro da nossa infância bendita,  e viva para sempre no coração de um povo que te ama e que te quer bem.

Vem, menino Jorge! Para brincarmos e sermos crianças, outra vez.

P.S. A maioria não se conteve na última homenagem na Catedral, diante de seu corpo. Todo povo estava ali, visivelmente emocionado, com a saudação solene e detalhada de sua missão, a frente da Prelazia de Itacoatiara, feita pelo historiador Francisco Gomes. Este artigo foi escrito no dia 02 de julho de 1998. Agradeço a profª. Dilma e ao poeta Domingos por terem guardado o texto em segredo.

Visits: 30

Compartilhe nas redes:

Uma resposta

  1. Puxa, amigo Zé. Você faz a gente chorar! Jorge Marskell não foi só o iluminado que pousou na velha Serpa trazendo a paz e distribuindo felicidades. Foi o profeta da liberdade e da propagação da Justiça (assim mesmo, com letra maiúscula). O extraordinário ser humano que foi, hoje transformado em anjo do céu, a velar por todos nós. O mundo é assim mesmo: vão os bons para velar pelos que ficam e, assim, intercedendo por nós outros, provam que é melhor perdoar os que porventura nos ofendem e sermos mansos de coração como manda o Todo Poderoso. Obrigado, amigo. Você não avalia o bem que sua escrita traz aos nossos corações saudosos. Saudosos do Mano JORGE…

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques