Manaus, 16 de abril de 2024

Povos indígenas e as letras

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Qualquer apreciação a propósito das letras amazonenses, sem uma referência aos povos indígenas, fica completamente sem sentido. Do outro lado da fronteira cultural que divide a Amazônia, nos espreita uma amplidão fantástica, uma tradição milenar que produziu literatura de rara beleza e complexidade, fábulas de rara crueza, forte e sensível expressão de forças primevas, cuja elegância seduziu homens como o conde Ermanno Stradelli, que veio para o Amazonas em 1890. Foi com este fidalgo, etnógrafo, rico, corajoso, um herói romântico típico da Amazônia, que a lírica dos povos indígenas começou a ser revelada dentro de uma compreensão artística antes que etnográfica. Seus livros, como LeggendadelTaria, colecão de contos e narrativas heroicas, ou La Leggenda DelJurupary, um belíssimo registro da saga do grande legislador, antecedem Raul Bopp na reinvenção literária do mundo amazônico.

LeggendadelTaria, lembra muito o antigo romance de amor, um gênero literário que crava suas raízes na mais cara tradição literária italiana. As descrições em versos do cenário, os gestos cavalheirescos, a renúncia final dos contendores frente à carnificina, fazem desta saga uma fábula “mileseaca” do rio Vaupés.

Stradelli encontrou na narrativa fabulosa dos tariana uma linguagem apenas nascida, como é de nascimento o êxtase de Raul Bopp. E não é por pura associação de ideias que Nunes Pereira, em 1966, intitula sua monumental obra de Moronguetá, um Decameron Indígena. Sem interferir na redação dos mitos, Nunes Pereira registra um estilo rico, matizado e sem grilhões. Um registro de mito e comportamentos que para Lévi Strauss “estocam e transmitem informações vitais” assim como os circuitos eletrônicos e os processadores são capazes de arquivar. Reconhecendo esta autoridade do mito, poetas como Stradelli defendem a primeira realidade da região, realidade maior e mais relevante, pela qual está determinado o próprio destino da Amazônia. Conhecendo isto, estes “segredos profundos, sedutores e envolventes como certos cipós que se cobrem de flores para fingir fragilidade”, como bem escreveu Câmara Cascudo a respeito de Stradelli, descobrimos que vivemos num mundo onde o mito ainda vive e o relacionamento do homem com a natureza é ainda o mesmo relacionamento dos deuses com a sua criação. Mas hoje os deuses foram banidos para a penitenciária da etnografia, o status ontológico do mundo está traduzido pelo potencial de energia elétrica. O esforço de Stradelli se repetiu nas obras de J. Barbosa Rodrigues e Brandão de Amorim, autores de antologias como Lendas em Nheengatu e Português e Poramdubas Amazonenses. Mas foi somente em 1985 que um primeiro autor totalmente indígena pode responder o diálogo proposto pelo fidalgo italiano. Trata-se de Luis Lana, cujo nome em dessa na é Tolomen-ken-jiri, autor de Antes o Mundo não Existia, narração precisa do mito cosmogônico de sua cultura, escrito em português e dessa na, sob enormes dificuldades em sua aldeia do rio Tikiê. Luiz Lana, que nasceu em 1961, filho do chefe de sua tribo, fez o livro preocupado com a preservação do acabou se tornando o primeiro índio a escrever e ter seu livro publicado em 500 anos de história do Brasil. Antes o Mundo não Existia está traduzido para diversas línguas europeias e estimulou o surgimento de outros escritores indígenas, que estão tornando vernáculo seus idiomas ágrafos, e são editados pela primeira editora indígena do país, propriedade da FOIRN- Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. Hoje a literatura criada por autores indígenas é uma realidade. No I Encontro de Literatura Indígena, realizada nos quadros do Flifloresta, diversas etnias se reuniram para debater os problemas do fomento e difusão desta literatura, que já tem uma significativa circulação em microrregiões.

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