Manaus, 29 de março de 2024

Por que mentimos? (2)

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*Yudhijit Bhattacharjee 

Enganar, iludir, trapacear: a ciência debate as causas da mentira, um hábito cada vez mais comum na era digital. 

Ainda que a honestidade seja melhor, o fingimento e a desonestidade fazem parte da condição humana. 

As crianças de 5 e 6 anos ficam entre os dois extremos. Num dos estudos, Lee usou como brinquedo o dinossauro Barney. Uma menina de 5 anos, que negou ter espiado o boneco coberto por um pano, disse a Lee que queria tocá-lo antes de dar um palpite. “Aí, ela enfia a mão debaixo do pano, fecha os olhos e diz: ‘Ah, é o Barney?”, conta o pesquisador. “Por que você acha isso?” E ela responde: “Porque dá para sentir que é roxo”. 

O que está por trás dessa sofisticação maior das mentiras é o desenvolvimento da capacidade que tem uma criança de se colocar no lugar do outro. Conhecido como “teoria da mente” ou “perspectiva cognitiva”, trata-se da destreza que adquirimos para entender convicções, propósitos e conhecimentos dos outros. Igualmente fundamental para o ato de mentir é a função executiva do cérebro: a necessária capacidade de planejamento, atenção e controle de si mesmo. As crianças de 2 anos que mentiram durante o experimento de Lee alcançaram melhores resultados nos testes de perspectiva cognitiva e de função executiva quando comparadas àquelas que não mentiram. Mesmo aos 16 anos, os mentirosos mais competentes têm um melhor desempenho nesses testes que os mais inaptos. Por outro lado, aqueles que podem ser classificados no espectro do autismo – no qual há comprovadamente atraso no desenvolvimento de uma perspectiva cognitiva robusta – não são muito bons para mentir. 

Pouco tempo atrás, de manhã, tomei um Uber para visitar o psicólogo Dan Ariely, da Universidade Duke, e um dos principais especialistas em mentira no mundo. No interior do carro, embora limpo, pairava um cheiro forte de meias usadas, e a motorista foi cortês mas teve dificuldade em achar o caminho. Quando afinal chegamos, ela me perguntou sorridente se lhe daria uma avaliação de cinco estrelas. “Claro”, respondi. Mais tarde, porém, fiquei nas três estrelas. E aliviei a culpa dizendo a mim mesmo que era melhor não enganar os milhares de outros usuários do Uber. 

O interesse de Ariely pela desonestidade vem de 15 anos atrás. Folheando uma revista durante um voo de longa distância, ele topou com um teste de habilidade intelectual. O psicólogo respondeu à primeira questão e virou a página para confirmar o resultado. Foi aí que não resistiu a espiar de relance a resposta certa à questão seguinte. Prosseguindo assim pelo restante do teste, ele obteve um resultado muito bom. “Mas aí, quando acabei, me dei conta: eu tinha trapaceado!” Esse episódio está na origem do interesse que passou a orientar a vida de Ariely: o estudo da mentira.

Em experimentos feitos por ele e por colegas, voluntários recebem um teste com 20 questões simples de matemática. São orientados a resolver o maior número delas em cinco minutos – e a cada resposta correta recebem uma recompensa monetária. Também recebem a instrução de colocar a folha em uma fragmentadora de papel antes de informarem o número de questões solucionadas corretamente. No entanto, as folhas não eram de fato picadas – e logo se viu que muitos voluntários mentiam. Em média, diziam ter solucionado seis questões, quando eram quatro. Tais resultados foram similares nas mais diversas culturas. A maioria de nós mente, mas só um pouco. 

Porém, mais intrigante para Ariely não é o motivo pelo qual tantos mentem, e sim porque não mentem bem mais. “Aqui, damos às pessoas uma chance de ganhar indevidamente muito dinheiro, mas elas só trapaceiam um pouco. Isso significa que algo nos impede – a maioria de nós, pelo menos – de continuar mentindo cada vez mais”, comenta. E o motivo, segundo ele, é que queremos nos ver como sendo honestos, pois, em certa medida, internalizamos a honestidade como um valor que nos ensinado pela sociedade. É por isso que, a não ser nos casos dos sociopatas, a maioria de nós fixa um limite para o quanto estamos dispostos a mentir. Esse limite é determinado por normas estabelecidas por meio de um consenso informal, como a aceitação tácita de que não é grave a gente levar para casa alguns lápis do almoxarifado da empresa em que trabalha. 

Para os membros da sua equipe, assim como para os juízes que eram os seus colegas, no Tribunal Superior do Condado de Los Angeles, Patrick Couwenberg era um herói americano. Ele lhes havia contado que recebera uma medalha Purple Heart por seu serviço militar no Vietnã. Também participara de operações sigilosas da CIA. O juiz Couwenberg se vangloriava do seu currículo acadêmico – havia se formado em física e tinha um mestrado em psicologia. Mas nada disso era verdadeiro. Ao ser confrontado, a defesa de Couwenberg atribuiu o seu comportamento a uma enfermidade conhecida como pseudologia fantástica, ou mitomania – uma compulsão para contar histórias nas quais os fatos são mesclados a fantasias. Essa argumentação não impediu que ele fosse afastado dos tribunais em 2001. 

Não parece haver consenso quanto à existência de um vínculo entre saúde mental e mentira, mesmo que portadores de determinados transtornos psiquiátricos apresentem às vezes comportamentos mentirosos específicos. Os sociopatas – indivíduos com transtornos antissociais – tendem a manipular outros com mentira, ao passo que os narcisistas podem recorrer a falsidades para engrandecer a própria imagem. 

Entretanto, acontece algo de diferente, em termos físicos, no cérebro dos indivíduos que mentem mais? Em 2005, a psicóloga Yaling Yang e as suas colegas compararam escaneamentos cerebrais de três grupos de pessoas: 12 adultos com história pregressa de mentiras compulsivas, 16 que se encaixavam nos critérios de personalidade antissocial, e 21 que não exibiam transtornos antissociais nem tinham o hábito de mentir. Os pesquisadores constataram que os participantes do primeiro grupo tinham ao menos 20% mais fibras neuronais no córtex pré-frontal, sugerindo que os mentirosos contumazes exibem uma conectividade maior em seu cérebro. É possível que isso os predisponha a mentir, uma vez que conseguem elaborar mentiras com mais facilidade que os outros – ou talvez a maior conectividade seja consequência das mentiras reiteradas. 

Os psicólogos Nobuhito Abe e Joshua Geene escanearam o cérebro de voluntários usando a técnica de imageamento por ressonância magnética funcional (fMRI, na sigla em inglês) e descobriram que aqueles que costumavam agir com desonestidade apresentavam uma ativação maior do núcleo accumbens – uma estrutura do encéfalo frontal que desempenha papel crucial no processamento das recompensas. “Quando mais excitado o sistema de recompensas com a possibilidade de ganhar dinheiro, maior é a probabilidade de você trapacear”, explica Greene. Em outros termos, a cobiça ou a ganância podem aumentar a nossda predisposição de mentir. 

Uma mentira pode levar a outra e essa a mais outra. Um experimento concebido pelo neurologista Tali Sharot revelou de que modo o cérebro vai se acostumando ao estresse e/ou ao desconforto emocional quando mentimos, tornando mais fácil incorrer de novo em inverdades. No escaneamento por fMRI dos participantes, a equipe concentrou-se na reação das amígdalas cerebelosas, regiões do cérebro implicadas no processamento das emoções. Os investigadores constataram que a reação das amígdalas se torna progressivamente mais acentuada a cada mentira, mesmo quando elas vão se afastando cada vez mais da verdade. “É possível que a realização de pequenos atos de trapaça acabe por levar a trapaças de maior consequência”, afirma Tali. 

Muito do conhecimento que nos permite entender o mundo e nele atuar vem daquilo que ouvimos dos outros. Sem a confiança implícita que depositamos na comunicação humana, acabaríamos paralisados como indivíduos e deixaríamos de manter relacionamentos sociais. “Acreditar no outro é tão vantajoso para a gente que isso compensa, em termos relativos, aquelas eventuais ocasiões em que somos enganados”, conta o psicólogo Tim Levine, da Universidade do Alabama em Birmingham. 

O fato de estarmos propensos, em termos neurológicos, a confiar nos outros nos torna intrinsecamente crédulos. “Quando toca o telefone, e o identificador de chamadas aponta que é da Receita Federal, a pessoa automaticamente acredita nisso. Ela não se dá conta de que alguém pode manipular o identificador de chamadas. Por isso funcionam os golpes dos trapaceiros”, comenta Frank Abagnale Jr., cujas trapaças quando jovem incluindo a falsificação de cheques e a personificação de um piloto de avião, inspiraram o filme Prenda-me Se For Capaz, de 2002. 

Para o psicólogo Robert Feldman, isso é o que se chama de “a vantagem do trapaceiro”. “Ninguém espera que o outro minta”, comenta, “e na maioria das vezes, as pessoas querem ouvir o que mais lhes interessa”. Nós tendemos a desconfiar pouco daqueles enganos que nos agradam e nos confortam – sejam eles falsos elogios ou promessas de lucros altos para um investimento. E, quando vêm de gente com poder e status, é ainda mais fácil que as falsidades sejam aceitas. 

Para os cientistas, está claro que somos ainda mais propensos a aceitar as mentiras que confirmam a nossa concepção de mundo. É por causa dessa vulnerabilidade que proliferam nas redes sociais memes que afirmam que Barack Obama não nasceu nos Estados Unidos ou que não estão ocorrendo as mudanças climáticas. O desmascaramento dessas mentiras não diminui a força delas, “pois as pessoas avaliam os indícios que lhes são apresentados através de um filtro de crenças preconceitos”, diz o linguista George Lakoff, da Universidade da Califórnia em Berkeley. “Quando surge um fato que não e encaixa nesse enquadramento, ele é ignorado ou ridicularizado”. 

Um estudo feito por Briony Swire-Thompson, da Universidade da Austrália Ocidental, registra a ineficácia das informações baseadas em evidências para a refutação de crenças equivocadas. Em 2015, Briony e colegas apresentaram, a cerca de 2 mil adultos americanos, uma dentre essas duas afirmações – “As vacinas causam autismo” ou “Donald Trump disse que as vacinas causam autismo”. (Em várias ocasiões, o presidente sugeriu existir uma ligação entre vacinas e autismo, a despeito da ausência de comprovação científica). 

Os simpatizantes de Trump mostraram uma crença mais acentuada nessa inverdade quando o nome do político veio associado a ela. Mais tarde, alertados do estudo científico sobre a falsidade do vínculo entre vacinação e autismo, eles foram solicitados a reavaliar a sua opinião anterior – e passaram a aceitar as afirmações de que o vínculo era espúrio. Contudo, ao serem testados uma semana depois, a crença nesse vínculo retornou quase no mesmo nível anterior. 

Os indícios contrários às falsidades podem acabar, na verdade, reforçando a crença nelas. “Há uma tendência de que as pessoas considerem verdadeira uma informação com a qual estão familiarizadas. Assim, toda vez que você se desdiz corre o risco de torná-la mais familiar, o que faz com que, ironicamente, a retratação seja cada vez menos efetiva no longo prazo”, diz Briony. 

Tive contato com esse fenômeno pouco depois de ter conversado com a pesquisadora. Quando um amigo me enviou um artigo listando os dez partidos políticos mais corruptos no mundo, eu reenviei o link a um grupo no WhatsApp formado por quase 100 colegas de colégio na Índia. O motivo do entusiasmo era a presença, no quarto lugar da lista, do Partido do Congresso indiano. Como não sou fã desse partido, senti certo prazer. Mas logo fiquei sabendo que a classificação não se baseara em nenhum critério confiável, e tinha uma fonte suspeita. Enviei uma mensagem de desculpas ao grupo, comentando que o artigo provavelmente não passava de informação falsa. 

Isso não impediu que outros reenviassem o link em várias ocasiões durante o dia seguinte. Então, me dei conta de que a correção que eu enviara não tivera o menor efeito. Muitos dos meus amigos – pelo fato de compartilharem a minha antipatia pelo Partido do Congresso – estavam convencidos de que a classificação era confiável, e toda vez que a reenviavam estavam inadvertidamente ou talvez deliberadamente reforçando pouco a pouco a sua legitimidade. A contraposição de qualquer fato verdadeiro seria ineficaz. 

Qual é então a melhor maneira de impedir a difusão rápida de inverdades? Não há resposta óbvia para isso. Afinal, a tecnologia descortinou um novo horizonte para a mentira, acrescentando um giro do século 21 a um antigo conflito entre dois aspectos da nossa natureza: a propensão tanto para mentir como para confiar.  

*Escritor de Ciência indiano. Doutor em História e Filosofia. Artigo na Revista National Geographic Brasil – Edição número 207, Junho de 2017.

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