Manaus, 29 de março de 2024

Paladino da fé e da esperança (2)

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Homenagem a dom Jorge Eduardo Marskell, saudoso bispo da Prelazia de Itacoatiara, que, se estivesse entre nós, no dia 08 de novembro de 2015 teria completado 80 anos de idade. 

Ainda em 1970, como resultado da grande enchente desse ano, é iniciado o povoamento do bairro Araújo Costa; surgem os primeiros conflitos de terra na área de expansão urbana da cidade, envolvendo trabalhadores ligados ao movimento que mais tarde iria desaguar na criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itacoatiara.

Em menos de sete anos de sua elevação, dom Francisco Paulo Mc-Hugh pede dispensa do governo da Prelazia, por motivo de doença, no que é atendido segundo carta de confirmação da Nunciatura Apostólica, datada de 08 de julho de 1972. No dia 15 desse mês e ano é decretada a renomeação do arcebispo dom João de Souza Lima para servir como administrador apostólico. (*).

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(*) Essas datas apanhadas nos arquivos da Prelazia – período 1972/1978, seguramente apontadas pelo bispo dom Jorge Marskell, conflitam com as mencionadas no Diário das Irmãs Adoradores do Sangue de Cristo – 1964/1974; segundo esse último documento: “Dia 10 de setembro de 1972, dom Francisco Paulo… renunciou ao exercício de suas funções episcopais… Dia 20 de setembro de 1972, dom Paulo veio jantar em nossa casa… Com sua renúncia, a situação do Colégio Paroquial ficará difícil… Dia 22 de setembro – Missa solene de despedida de dom Francisco Paulo e de posse do arcebispo de Manaus…”. A coerência manda que se aceite a posição que adotamos: o processo de tramitação do requerimento de renúncia de dom Francisco Paulo – da remessa do pedido à sua aceitação pelo Vaticano e à confirmação pela Nunciatura Apostólica – demandou realmente alguns meses (cf. Arquivo da Prelazia). Nota de agora: Segundo o livro da CNBB – 1998, antes citado, a renúncia de dom Francisco Paulo aconteceu em 15/07/1972. A partir dela, tornou-se bispo emérito.
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Segundo a respectiva ata de posse, dom João de Souza Lima assumiu a administração apostólica no dia 16 de setembro de 1972, em cerimônia simples assistida pelos padres Francisco Paulo Mc-Hugh, Luiz Hewer, Humberto Den Tahn, Douglas Mackinnon, Raimundo O’Tole, Omar Dixon e Gabriel.

Apesar dos dez anos de sua permanência em Itacoatiara, dom Francisco Paulo Mc-Hugh ainda não se acostumara com o clima regional. Com a saúde seriamente abalada, necessitava retornar ao Canadá. No início de setembro, confirmando seu pedido de renúncia, o ex-prelado deu começo às suas despedidas. Dia 20, após rezar missa na capela do Colégio Nossa Senhora do Rosário de Fátima, jantou com as irmãs Adoradoras do Sangue de Cristo (as ASC); embora o renunciante aparentasse estar calmo e descontraído, entre as religiosas o ambiente era de grande tristeza.

No dia 22 de setembro aconteceu a missa solene de despedida do renunciante. Concelebrado por ele e dom João de Souza Lima, o ato litúrgico contou com a presença de diversas autoridades, de grande massa popular e, inclusive, de alguns pastores de igrejas evangélicas. Os alunos do Colégio Nossa Senhora do Rosário, trajados em uniforme de gala, marcaram presença cantando com entusiasmo e emoção. Após a concelebração, dom Francisco Paulo Mc-Hugh recebeu homenagens do prefeito e da Câmara Municipal.

À noite do dia 26 de setembro, quase que furtivamente, o velho sacerdote viajou para Manaus e, de lá, ao Canadá, recolhendo-se às instalações de sua congregação em Scarboro. (*).

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(*) Posteriormente, em visita sentimental, dom Francisco Paulo voltou duas vezes a Itacoatiara: (1) seis anos após a sua partida para o Canadá, para assistir à posse de dom Jorge Marskell; e (2) em 1989. Na primeira vinda, como é óbvio, ainda estava lúcido; na segunda, já acometido de derrame, caminhava e falava com dificuldades. Em ambas visitas, chegou às lágrimas, dada a emoção de rever o povo e os muitos amigos que aqui deixara. Dom Francisco Paulo faleceu no Canadá e foi homenageado em Itacoatiara com a aposição de seu nome à Escola Municipal Dom Paulo, situada no bairro de São Jorge.
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No dia 10 de setembro de 1972, num trabalho conjunto Prelazia de Itacoatiara e delegacia estadual da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), é fundado o Sindicato dos Trabalhadores Rurais. O serviço inicial de preparação e orientação contou com a participação do padre Raimundo O’Tole e do sindicalista Francisco Augusto Marques Garcia. Esse sindicato, desenvolvendo um trabalho de conscientização e defesa do homem do campo, transformou-se rapidamente num polo irradiador do movimento sindical de trabalhadores rurais para todo o médio Amazonas.

A grande extensão territorial da Prelazia, os seguidos desfalques na equipe e a enfraquecida produção de sacerdotes no Seminário de Manaus, estavam inviabilizando a ampliação dos trabalhos pastorais. Essa situação conduzia os padres canadenses a almejar um intercâmbio com missionários brasileiros para preencher e ampliar os quadros existentes de molde a melhor atender à demanda e proporcionar uma grande abertura da Igreja de Itacoatiara para o Brasil afora.

Destarte, dom João de Souza Lima, em novembro de 1972 propõe ao cardeal arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, a criação de um programa de ajuda fraterna à Prelazia. Sensibilizado com o pedido, o chefe da Igreja paulista, em julho do ano seguinte, visitou Itacoatiara, acompanhado do padre Celso Pedro da Silva. Então, com apoio no trabalho “Visão da Prelazia de Itacoatiara”, elaborado em 1968 pela equipe local, é lançada a semente do projeto “Igrejas-Irmãs”, cuja aprovação dá-se em reunião realizada na capital paulista, em agosto de 1973, entre o núncio apostólico do Brasil, o cardeal arcebispo de São Paulo, o arcebispo de Manaus e administrador apostólico da Prelazia, dom João de Souza Lima, o superior geral da missão de Scarboro, padre Raul D. Querele, e o vigário-geral de Itacoatiara, padre Douglas Mackinnon. Em janeiro do ano seguinte, com a chegada dos primeiros religiosos e voluntários leigos, é iniciado o projeto Igreja-Irmãs.

Nos dez anos de duração do projeto (1974/1984), dezenas de missionários egressos da Arquidiocese de São Paulo trabalharam na Prelazia, distribuídos pelos municípios de Silves, Itacoatiara, Itapiranga, São Sebastião do Uatumã, Urucará e Urucurituba. Tratavam-se de padres, irmãs e leigos – profissionais dos mais variados setores – todos trazendo sua experiência e, integrados nas pastorais sociais, dando uma contribuição ao trabalho de aproximação da Igreja do povo de Deus.

Excelentes animadores de comunidade, os missionários do programa São Paulo-Itacoatiara, pautaram seu trabalho segundo as linhas prioritárias da Prelazia orientadas no plano da CNBB – formação de líderes comunitários, família, juventude, promoção social e defesa dos direitos humanos. Entre tantos, destacaram-se: padres Celso Pedro da Silva, Antônio Haddad, Gabriel Fortier, José Lui, José Maria Pinheiro, Martin Segu Girona, Antônio Macedo e Tiago Thorlby; irmãs Nair de Assis Oliveira e Maria José Ribeiro; psicóloga Terezinha Zola; economista Gilberto Zupp; e professores Edith Rojo, Pedro Luiz e Sylvia Aranha Ribeiro. Ainda, como autônoma veio a irmã Henriqueta Barbosa Spínola. (*).

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(*) Além do trabalho missionário, das atividades de campo de formação e orientação de equipes, os religiosos e leigos paulistas realizaram um serviço de cunho técnico, informativo e cultural que extrapola as fronteiras locais. A título de exemplo destacamos que, além de sacerdote que trabalhou nesta Prelazia em 1976/1980, José Maria Pinheiro é advogado e atualmente exerce a função de bispo auxiliar de Colorado do Oeste da Diocese de Guajará-Mirim, no Estado de Rondônia; o padre Tiago Thorlby é autor do livro “A Cabanagem na fala do povo”, edição 1981; as religiosas Maria José Ribeiro, Nair de Assis Oliveira e Henriqueta Barbosa Spínola pertencem à congregação de Nossa Senhora Cônega de Santo Agostinho: a segunda traduz as obras originais de Santo Agostinho e a terceira escreveu “Itacoatiara, sua história e seus bairros”, edição 1992, a dissertação de mestrado em ciências sociais aplicadas à educação “O ribeirinho, ontem e hoje na defesa do peixe no Amazonas”, 1997, e está concluindo a tese de doutorado em ciências sociais aplicadas ao meio ambiente, “O caboclo amazônico amigo e defensor da natureza” – ambas junto à Universidade Estadual de Campinas/SP. Quanto à professora Sylvia Aranha Ribeiro, é autora de “Vida e morte no Amazonas”, 1991, e “Encontro das águas”, 1998. Todas essas obras foram produzidas a partir da experiência de seus autores na Prelazia de Itacoatiara. Nota de agora: O padre Antônio Haddad, nos idos de 1980, conviveu estreitamente com o Autor deste artigo no MDB de Itacoatiara, que ele o presidia à época, empenhado na luta contra a ditadura. Até ensaiou ser vice-prefeito da chapa que Francisco Gomes encabeçou pelo partido, em 1982 – mas Haddad foi proibido pela Igreja. O padre José Maria Pinheiro foi outro entusiasta daqueles áureos tempos de Itacoatiara, que contou com a leal e efetiva cooperação de Gomes na tarefa de defender os direitos humanos na cidade. Quanto à irmã Henriqueta Spínola: além de servir à Prelazia atuou como professora da Escola Vital de Mendonça. Gomes ajudou-a fornecendo-lhe os dados necessários à elaboração de seus trabalhos sobre educação e história de Itacoatiara.
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Em missão de coordenação e supervisão ao projeto Igreja-Irmãs, visitaram a Prelazia as seguintes autoridades da Arquidiocese de São Paulo: o cardeal arcebispo dom Paulo Evaristo Arns (em 1973, 1974, 1976 e 1980); o arcebispo auxiliar dom Benedito de Uchoa Vieira e a secretária Maria Ângela Borsoi (ambos em 1975).

Retroagindo a 1973, alguns fatos interessantes ocorreram em nosso Município: na área cultural, a fundação do Teatro Escola de Itacoatiara; na área da justiça trabalhista, a instalação da Junta de Conciliação e Julgamento; na área educativa, o Colégio passa a denominar-se Escola de Primeiro e Segundo Graus Nossa Senhora do Rosário; na área econômico-social, a instalação das primeiras empresas madeireiras e o início das invasões de barcos pesqueiros nos lagos regionais.

Reportando-nos ao ano de 1974, em abril é comemorado o primeiro centenário da Lei provincial nº 283, de 25 de abril de 1874, que deu foros de cidade à antiga vila de Serpa. As festividades culminaram com a outorga da “Medalha Centenário de Itacoatiara” a diversas personalidades estaduais e municipais. Na área de atuação específica da Igreja é feito o lançamento do boletim informativo “Cipó” e registrado que a população ribeirinha começa a reagir violentamente contra os invasores de lagos (*). Em 31 de dezembro desse ano, as irmãs ASC se retiram da cidade, transferindo suas atividades na escola de primeiro e segundo graus a professores leigos locais. Após exatos dez anos de permanência em Itacoatiara, trabalhando na educação e na catequese, a comunidade das Adoradoras naquele momento representadas pelas irmãs Clemens de Oliveira, Ana Maria Dias Fontes, Alice Marques de Araújo e Verônica Bachá, foi chamada a atuar em outros lugares onde sua presença apostólica se fazia imprescindível.

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(*) Cipó = Caderno Informativo do Povo da Prelazia, “pequena ferramenta de informação. Anuncia o que traz esperança, vida e libertação. Denuncia o que atrapalha a caminhada, e que fere a dignidade dos irmãos”. A partir da reação popular contra a invasão dos lagos, as comunidades católicas se insurgem contra a atuação do poder econômico e protestam contra a omissão do poder político. Não admitem mais os estragos do peixe realizados por pescadores profissionais que prejudicam a subsistência dos ribeirinhos e de sua família. Em defesa do pão de cada dia, os comunitários fazem reuniões, criam comissões e se mobilizam pugnando para que as câmaras municipais votem leis de preservação ambiental e de proteção às espécies da fauna aquática. Logo mais seus reclamos são atendidos: à influência das equipes de defesa do peixe e preservação dos lagos mais próximos das comunidades, alguns municípios da Prelazia baixam instrumentos legais regulamentando a pesca profissional e a de subsistência e definindo os lagos de procriação e manutenção. Muitos “movimentos em defesa do peixe se desenvolvem em Itacoatiara, Itapiranga, Silves, Urucará e outros municípios”. (Cf. Spínola, 1997).
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Na verdade, desde janeiro de 1974, quando chegaram os religiosos e leigos da Arquidiocese de São Paulo, as irmãs do Sangue de Cristo passaram a se sentir preteridas e até desprestigiadas. É o que se conclui da leitura do relatório de 02 de junho de 1987, da lavra de irmã Evelina Trindade. Segundo trechos desse escrito, o trabalho apostólico e pastoral escolar das Adoradoras era facilitado “pelo apoio que recebiam dos padres de Scarboro e mui particularmente do bispo dom Paulo Mc-Hugh”. Em 1974, “este apoio, que já vinha falhando gradativamente por parte dos padres de Scarboro, fez-se sentir declaradamente quando padre Haddad, da Igreja-Irmã de São Paulo, como coordenador da pastoral da Prelazia, deixou de considerar em reunião o trabalho no colégio como uma forma de pastoral, pastoral da educação. Com a retirada das irmãs ASC, nesse ano, deixou de haver um colégio religioso em Itacoatiara e que alterou a feição social da cidade, mas, felizmente, os leigos, ex-alunos do colégio o assumiram. Então, o colégio já estava conveniado com o Estado… com a permissão e aquiescência dos responsáveis pela Prelazia”.

Quase seis anos após a sua partida para o Canadá, no terceiro quartel de 1974 padre Jorge Marskell retorna a Itacoatiara e, ao chegar, reassume suas funções sacerdotais em articulação com seus companheiros de Scarboro e com os religiosos e leigos chegados de São Paulo, dando ênfase às atividades pastorais de base.

Descendente de uma família humilde, padre Jorge (George) Edward Marskell era natural de Hamilton, cidade canadense da Província de Ontário. Contava pouco mais de vinte e seis anos de idade e dois de sacerdócio quando aqui chegou, em julho de 1962 – em companhia de seus patrícios Francisco Paulo Mc-Hugh, Douglas Mackinnon, Vicente Daniel e Miguel O’Kane. Em período anterior à sua função de vigário, assumida em outubro de 1965, Jorge Marskell já demonstrava certa desenvoltura no trato com os fiéis. Generoso, simples e virtuoso, mexeu com os sentimentos de fé e de esperança da população urbana e rural dos municípios que integram a Prelazia.

Mantendo contato frequente com os jovens, padre Jorge diariamente visitava os velhos e doentes. Amava os seus semelhantes e desejava ardentemente o seu bem estar. A propósito, contam-se algumas passagens demonstrativas de ter sido ele um homem realmente caridoso. Certa feita, ao visitar um leproso no bairro do Jauary, abraçou-o e, cuidando carinhosamente do enfermo, limpou-lhe as feridas e acalentou-o com um sorriso triste. Com esse gesto, padre Jorge mostrava que “tinha um amor especial pelo mais pobre, o mais precisado… Homem autêntico da Igreja do Concílio, da Igreja do Brasil que optou pelos pobres, ele procura tudo fazer para que o que não tem voz nem vez possa caminhar com os próprios pés”. (*).

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(*) Cf. Irmã Marília Menezes, in artigo inserido no semanário “O São Paulo”, julho/agosto de 1978, citado em “Elegia ao amigo e bom pastor dom Jorge Marskell”, discurso proferido pelo Autor deste livro na ocasião do sepultamento do saudoso bispo, em Itacoatiara, aos 03/07/1998.
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Em suas desobrigas pelo interior, Jorge Marskell era ao mesmo tempo guia e motorista da embarcação que o conduzia; à noite, esse instrumento de transporte e trabalho era por ele transformado em dormitório.

Dono de grande sensibilidade social, ele tomou os costumes regionais para seu próprio aprendizado. As manifestações populares, as festas profano-religiosas: o cultos dos santos, as promessas, as procissões, os arraiais, as rezas dos fiéis foram introduzidas em seu breviário de padre moderno e progressista. Obviamente que, após sua chegada a Itacoatiara, enfrentou dificuldades de adaptação ao clima, ao idioma, aos hábitos e à alimentação locais. Mas, superando-as, em pouco tempo já estava plenamente adotado, aprendendo a dormir na rede e a comer peixe com farinha.

A chegada de dom Jorge e de seus companheiros da Sociedade de Scarboro coincidiu com as mudanças que a Igreja Católica passara a experimentar, a partir do Concílio Vaticano II, encaminhando-os a se comprometerem com os anseios de justiça dos setores marginalizados da população.

Em 17 de janeiro de 1975, decreto da Nunciatura Apostólica, dado a conhecer em Itacoatiara no dia 23, nomeia padre Jorge Marskell para servir como administrador apostólico da Prelazia. Sua posse, realizada no dia 02 de março, foi assistida somente por seus companheiros de clero. Quarenta e cinco dias depois desse evento, em 18 de abril de 1975 – logo em seguida à designação do amazonense Pedro Alencar Moreira para igual função – dá-se a instituição do leigo canadense Alan King como acólito e leitor. Este, quinze meses depois, ou seja, a 25 de julho de 1976, seria ordenado diácono na sede do Município de Urucurituba.

Assim que assumiu a administração da Prelazia, Jorge Marskell convocou seus pares para discutir a formação do Conselho Pastoral, sob a presidência do bispo e integrado por padres, freiras e leigos agentes de pastoral, além de representantes de várias áreas da sociedade civil. Além dessa novidade, que abria o processo administrativo interno da Prelazia, foi dado início à pastoral vocacional. A instituição apelava, assim, à convocação de homens e mulheres que tinham aptidão natural, tendência ou inclinação para a vida religiosa.

Em 1975, num momento em que a situação política do País desestimulava qualquer tentativa de renovação e de diálogo, padre Jorge Marskell ousava. Aos reclamos do homem do campo, ajudou a fundar a Comissão Pastoral da Terra, a nível nacional, sendo, por duas vezes, o seu vice-presidente. Dois anos depois, liderou a criação da Comissão regional, da qual foi bispo acompanhante.

Em janeiro de 1976 recebeu a visita do legendário Ulysses Guimarães (1916-1992) que, estando em campanha pela anistia, fazia-se acompanhar de próceres nacionais e regionais. A permanência em Itacoatiara do líder nacional da oposição serviu para acender o movimento derredor das eleições municipais. Então, as facções do partido governista – ARENA – desgastadas pela ditadura e as más administrações realizadas no Município, preocupavam-se com o avanço das candidaturas da legenda contrária – MDB – a prefeito municipal. Os jornais de Manaus noticiavam que, além dos candidatos locais de consagrado prestígio eleitoral Francisco Gomes da Silva, Helyberto Ruy de Paiva e Paulo Pedraça Sampaio, a oposição também poderia contar com o concurso de um dos enviados da Igreja de São Paulo, o padre Antônio Haddad. (*).

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(*) Figura das mais lúcidas e ativas da Igreja paulista, o padre Antônio Haddad estava em Itacoatiara desde janeiro de 1974. Intransigente defensor dos direitos humanos, no início de 1976 retornou a São Paulo e, lá, por envolver-se com presos políticos, foi perseguido por forças paramilitares. Nas eleições de 15/11/1976 foi eleito prefeito municipal, pela ARENA-01, o empresário Chibly Calil Abrahim, seguindo-se-lhe, na ordem de votação, o jovem advogado Francisco Gomes da Silva (MDB-01) e o tabelião Alberto Rodrigues do Nascimento (ARENA-02). Nota de agora: Ulysses Guimarães foi levado pelo Autor deste artigo à Casa Paroquial satisfazendo ao desejo do saudoso bispo Jorge de conhecer e ouvir o grande político que foi um dos responsáveis pela redemocratização do Brasil. Naquele dia, em almoço realizado no Lírio Hotel, ofertado pelo MDB ao líder nacional da oposição, o Autor deste artigo saudou Ulysses Guimarães e, este, em resposta, lançou sua candidatura a prefeito de Itacoatiara. O fato foi noticiado em todo o País, inclusive pela revista Veja (n.º 385, de 21/01/1976).
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O momentoso assunto serviu de pretexto para que os governistas de Itacoatiara acusassem a Igreja, tentando relacionar os interesses desta com os do partido de oposição ao governo.

Fiel às suas responsabilidades e numa demonstração de independência em relação a esses movimentos políticos, o administrador apostólico fez um alerta ao eleitorado: “Há a boa e a má política… A boa política é uma maneira de fazer o bem, de promover o progresso… é como a água que fertiliza a terra e faz a semente germinar. Traz a união e o bem estar das pessoas… A política ruim é como a água de enchente que destrói tudo… desvaloriza a pessoa como cidadão… mantém os maus no poder”. Jorge Marskell clamava por escolher bons representantes, políticos realmente identificados com os interesses populares, “que conheçam nossa vida, saibam dos nossos problemas e do que mais precisamos”. Para tanto, ele invocava a palavra do papa Paulo VI: “Política é uma das maneiras (não é a única) de viver o compromisso cristão de servir os outros”. (*).

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(*) Cf. Jorge Marskell, in “Esclarecimento cívico ao povo de Deus”, 1976. Quanto à ARENA – Aliança Renovadora Nacional e ao MDB – Movimento Democrático Brasileiro: foram criados em 1965, em decorrência do Ato Institucional nº 02, que extinguiu os partidos da época e implantou o bipartidarismo no País. Extintos, em 1980, com a reforma que reinstituiu o pluripartidarismo, converteram-se, respectivamente, em PDS – Partido Democrático Social e PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro”. (Cf. Koogan/Houaiss, 1993).
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A preocupação de dom Jorge Marskell era procedente. Comprometendo a lisura do pleito que se avizinhava, o fisiologismo tomava conta da campanha política, além de que a oposição sofria as mais absurdas e torpes pressões. Voltando à carga, em 31 de julho de 1976, o administrador apostólico pugnava para que o eleitor ficasse longe da politicagem, “instrumento de fazer da política meio de vida, de exploração, de dominação dos outros. A verdadeira política é o meio de servir os irmãos, de fazer o bem, de executar os dons que Deus nos deu para o benefício da comunidade… A Igreja é o povo de Deus, uma Comunidade de Fé… Todos são livres em escolher seus candidatos ou partidos. Mas que ninguém use da pregação, do culto, das pessoas, das coisas da Igreja para arranjar votos para si ou para algum candidato da sua simpatia”.

Em 1976, devido a seu precário estado de conservação, o relógio de torre colocado no alto da Matriz, adquirido em 1961 pelo vigário Alcides Peixoto, foi substituído por outro eletrônico ou de quartzo, garantindo a marcação do tempo com o máximo de exatidão.

Entretanto, esse maquinismo funcionou no período de apenas um ano, e sua desativação deveu-se à umidade do tempo e à falta de energia.

Ainda em 1976, três outros acontecimentos chamaram a atenção dos itacoatiarenses: (1) ampliando o setor de comunicação, a instalação da estação repetidora da TV Amazonas, em seguida à da TV Ajuricaba; (2) proporcionando a localização de muitas famílias de retirantes do interior, a criação do bairro denominado São Jorge, em homenagem a padre Jorge Masrskell, sempre solidário com a luta desse povo pela posse da terra, na busca de trabalho e pela instalação de uma infraestrutura mínima na área de molde a garantir sua sobrevivência; e (3) no dia 14 de novembro, anterior ao da eleição municipal, o grave acidente às margens da estrada Manaus-Itacoatiara, envolvendo um ônibus que submergiu no Rio Urubu, ocasionando a morte de trinta e nove pessoas.

No início de 1978 corriam notícias alarmantes sobre o mau funcionamento da unidade hospitalar, centralizada no Hospital “José Mendes”, devido a que, anos atrás, a maternidade havia sido desativada. O tratamento dispensado aos pacientes não era bom e o aumento do número de mortes trazia à população medo e revolta. A Prelazia, animada pelo Evangelho e fiel à Igreja de Cristo que se volta para os mais pobres e desamparados, reuniu um grupo de pessoas para apurar a verdade.

Após uma série de entrevistas com servidores, doentes e seus familiares, a comissão constatou inúmeras irregularidades administrativas, falta de ética profissional, uso indevido de recursos financeiros e desentrosamento entre o corpo médico e a diretoria do hospital.

Os fatos foram denunciados ao governador do Estado Henoch da Silva Reis (1907-1998), a cuja autoridade a Prelazia fes questão de informar que a unidade hospitalar não somente servia à população urbana e rural de Itacoatiara, mas também à dos municípios de Autazes, Silves, Itapiranga, Urucará, Urucurituba, Maués e Nova Olinda do Norte – tornando ainda mais grave a situação. Apesar da comprovação das irregularidades, as esperadas medidas saneadoras não aconteceram, levando a Prelazia a tomar a atitude extrema de retirar as irmãs de São José que, na unidade hospitalar, faziam o atendimento de enfermagem.

Bula papal de 14 de maio de 1978, firmada pelo sumo pontífice Paulo VI, promove a bispo-prelado o administrador apostólico padre Jorge Marskell. Em seguida, através do decreto de 17 de julho da Nunciatura Apostólica, é autorizada a ordenação da nova dignidade eclesiástica, cuja cerimônia acontece no dia 30 de julho.

A festa, assistida por cerca de oito mil pessoas, foi realizada em praça pública em que se proclamou o testemunho de todo o povo de Deus. Foi sagrante de dom Jorge Marskell o arcebispo metropolitano de Manaus, dom João de Souza Lima, e cossagrantes dom Milton Pereira, arcebispo coadjutor de Manaus, dom Ivo Catapan, representante do Arcebispado de São Paulo, e dom Francisco Paulo Mc-Hugh, ex-bispo-prelado [bispo emérito] de Itacoatiara. Estavam ainda presentes: dom Arcângelo Cerqua, bispo de Parintins, dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia/MT, dom Aldo Mongiano, bispo de Roraima, dom Moacir Grecchi, bispo do Acre e Purus, dom Gutemberg Régis, bispo de Coari, dom Adalberto Marzi, bispo do Alto Solimões, dom Joaquim Delange, bispo de Tefé, dom Glambelli, administrador apostólico de Bragança/PA, padre Pucci, representante da Diocese de Hamilton/Canadá, donde Jorge Marskell era originário, além de grande número de padres, religiosas e leigos das mais diversas localidades. A família Marskell, chegada às vésperas do Canadá, também se fez presente.

A cerimônia de ordenação contou com as seguintes partes: pedido para ser ordenado; leitura da bula papal nomeando padre Jorge bispo de Itacoatiara; interrogação do novo bispo; ladainha de todos os Santos; imposição das mãos sobre o eleito; oração para pedir a força do Espírito Santo sobre o eleito; e unção da cabeça do eleito.

A liturgia foi feita seguindo um estilo bem regional em que se explicou ao povo o significado espiritual da palavra Itacoatiara. A reflexão sobre o Evangelho tratou-se de uma dramatização, representada por uma rede de pescar, simbolizando a Igreja local.

Segundo o jornal “A Notícia”, de Manaus, edição de 31 de julho de 1978, “A liturgia para celebração da ordenação episcopal foi preparada em um linguajar todo regional, bem como vestes e demais ornamentos. O báculo do novo bispo era de pura carnaúba; o anel de caroço de tucumã e a hístola toda confeccionada de juta aplicada com galões. Sobre isso, dom Jorge disse que ‘o anel e o cajado são símbolos da missão do bispo. Ele é chamado a servir um povo. Para mim nada mais significante do que as coisas regionais, para mostrar a ligação do bispo com seu povo. Nosso povo, na maioria, é pobre. Estes símbolos também o são. Espero que eu tenha, também, o espírito de pobreza para poder servir e não ser servido’”.

A preocupação maior de dom Jorge Marskell era suprir a carência de pastores, já amenizada um pouco com a união da Prelazia à sua igreja-irmã Arquidiocese de São Paulo. Na ocasião da sua ordenação como bispo, trabalhavam na Prelazia cinco padres, sendo um paulista e quatro canadenses; três religiosas da missão canadense de São José e uma cônega paulista da congregação de Santo Agostinho; e onze voluntários, sendo seis paulistas e cinco italianos.

Nesse ano de 1978, a Prelazia dinamizou o trabalho da Pastoral da Juventude e da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos. A primeira organizou e dirigiu o festival de música cristã que, por quatro anos seguidos, encorajou jovens talentos e alegrou a comunidade, e a segunda, além de denunciar injustiças praticadas no hospital e na área fundiária, prestou serviços de orientação e assessoramento a moradores dos nascentes bairros periféricos, a presos da cadeia pública e a posseiros da Costa da Conceição. (*).

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(*) Nota de agora: Durante muitos anos, o Autor deste artigo colaborou direta ou indiretamente com a Prelazia, atendendo especialmente à Pastoral da Juventude e à Comissão de Direitos Humanos. Mesmo nos momentos mais difíceis, sempre se mostrou solidário com o amigo Jorge Marskell e sua equipe.
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Nesse período, o governo do Estado do Amazonas providenciou o asfaltamento total da Rodovia “Torquato Tapajós”, tendo o curso desta sofrido modificações com a retirada de muitas de suas curvas. Segundo projeto do deputado estadual Paulo Sampaio, essa denominação foi mudada para Rodovia “Vital de Mendonça”. Em novembro de 1978 ocorre a visita a Itacoatiara do presidente da República, general Ernesto Geisel (1908-1996).

Em 1979, a Prelazia cogitou de instalar em Itacoatiara alguns cursos superiores de licenciatura curta, sob os auspícios da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). Foi planejado que o campus avançado deveria localizar-se no prédio do convento das irmãs de São José. As conversações em torno do assunto tomaram certo impulso graças à intervenção do cardeal arcebispo de São Paulo e presidente da PUC, dom Paulo Evaristo Arns. Levada a proposta ao Projeto Rondon – à época, órgão oficial assessor e deliberativo nessa área – os mentores do projeto foram orientados a buscar a colaboração das autoridades estaduais e municipais. Entretanto, questões menores de ordem política impediram a concretização do empreendimento.

Malograda a instalação do centro universitário, em seguida o prédio do antigo convento é alugado pela Prefeitura Municipal para sediar o 2º Batalhão de Polícia Militar. Somente em abril de 1981 essa corporação deixaria o imóvel para ocupar o seu quartel construído no bairro de Santo Antônio.

Mantendo contato direto com todas as paróquias da Prelazia para conhecer e avaliar de perto o trabalho que vinha sendo desenvolvido por cada uma delas, dom Jorge Marskell olhava e escutava as lideranças religiosas com o objetivo de se familiarizar cada vez mais com a realidade da região e enlarguecer o trabalho, dando continuidade ao que já vinha sendo feito em sintonia com a pastoral de todo o Brasil. As questões sociais que envolviam a população menos favorecida, como a dos sem terra, dos índios, dos jovens das mulheres, eram tratadas pelo bispo de acordo com as orientações da CNBB.

Dom Jorge Marskell era fidelíssimo às deliberações de Medellin e Puebla. Acompanhando a trajetória do novo episcopado latino-americano de constante preocupação social, o bispo logo se distanciou das autoridades governamentais, tomando um posicionamento crítico frente às suas medidas, uma defesa corajosa dos direitos humanos.

Durante o seu governo, dom Jorge fez quatro visitas ad limina ao Santo Padre, em Roma; e, além de ter participado de importantes conclaves realizados no Brasil e no exterior, a serviço da Igreja, trouxe visitantes ilustres e expositores competentes, nacionais e regionais, para ministrar cursos e palestras: preocupava-o a permanente atualização dos quadros da Prelazia. Dentre muitas dessas personalidades, destacamos: dom Paulo Evaristo Arns, dom Pedro Casaldáliga, dom Moacir Grecchi, dom José Maria Pires, dom Herwim Klauter, dom Antônio Possamai, frei Leonardo Boff, os historiadores Possidônio da Mata, Oscar Beozzo e Eduardo Hoornaert, o economista Paulo Filizzola  de Araújo e o sociólogo Ivo Polleto.

Para a Igreja, 1980 foi um ano crítico. Além de inaugurar a pastoral indigenista e apoiar a semana cultural da juventude, a criação da união dos estudantes, o movimento de defesa dos lagos e a luta dos trabalhadores rurais do Paraná da Eva pela posse da terra, a Prelazia teve que enfrentar a perseguição política. Em 18 de junho, tachados de “politiqueiros” e de “subversivos”, os padres foram denunciados por políticos da ARENA-Am como agitadores do meio rural e por estarem dificultando a ação dos governos estadual e municipal. Acusados “de receber instruções de São Paulo para promover um trabalho evangélico equivocado e pregar doutrina fora da nossa realidade”, os religiosos de Scarboro foram defendidos no Congresso Nacional pelo deputado federal Mário Frota, do MDB-Am, o qual contestando com veemência tais ataques, afirmou que a intenção dos denunciantes era “silenciar aqueles que são os únicos que defendem realmente as populações oprimidas da exploração… que “pela grandeza do trabalho evangélico que desempenham… estão acima de críticas inconsequentes…”. Na oportunidade, e a exemplo do que fizeram com o padre francês Jacques Jentel, cogitou-se da prisão e expulsão de dom Jorge Marskell do País.

Em 1981, a comunidade das Adoradoras de Cristo se reintegra ao trabalho da Prelazia. Atendendo a insistentes pedidos do bispo dom Jorge Marskell, no dia 1º de março três dessas irmãs se estabelecem em Itacoatiara: Claudete Rodrigues, Ivete Morais e Ivanete Azevedo. Fixando residência no nascente bairro de Santo Antônio, elas passam a se dedicar ao apostolado das comunidades eclesiais de base, tanto neste como em outros bairros e no interior do Município. Em 1987, além de irmã Claudete Rodrigues, essa congregação mantinha trabalhando aqui as irmãs Iracy Cruz e Doroteia Nery, esta última prestando serviços na secretaria da sede da Prelazia.

Nesse ano, recrudescem as perseguições políticas contra a Igreja. No dia 07 de agosto de 1980 a Prefeitura Municipal de Itacoatiara, pretextando instalar na cidade um terminal pesqueiro, baixou decreto autorizando a desapropriação do imóvel onde está instalado o CENTREPI. Era uma represália porque, meses antes, a Prelazia concorrera para impedir que o terminal fosse construído em terreno da comunidade do bairro de São Pedro. Quando a Câmara Municipal se reuniu para votar a matéria, centenas de pessoas mobilizadas pelos religiosos e líderes da oposição impediram, por tumulto, a decisão. A pressão popular continuou por vários dias até que o prefeito revogou a arbitrária medida.

Ainda em 1981, em decorrência da luta em favor da instalação de água e luz no bairro de Santo Antônio, abre-se nova crise entre as autoridades municipais e a Prelazia. No dia 17 de junho, cerca de sessenta e cinco famílias que viviam no mais absoluto estado de pobreza, lideradas pelo padre Tiago Thorlby, portando faixas e cartazes de protesto, vão à sede da Prefeitura e lá são impedidas de falar com o prefeito. Os ânimos se exaltam e os líderes do movimento são presos.

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