Manaus, 28 de março de 2024

O calor de Manaus – 2

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O calor é de fato terrível. Não que a cidade experimente temperaturas altas, como as do verão carioca, onde 50 graus centigrados à sombra é coisa corriqueira nos meses de fevereiro e março… 

… 0 problema não é a temperatura muito alta, é a persistência e a alta taxa de umidade. Quase faz 32 graus centígrados o ano todo e durante todo o dia amanhece e nada daquela fresca brisa matinal, já acordamos suados porque lá estão os perseverantes 32 graus. Vai alta a madrugada, o povo dorme e os boêmios bebem e como se bebe ali, e nada daquela doce aragem vagabunda das noites insones, porque os 32 graus não arredam o pé nem mesmo para uma boemiazinha. Para as pessoas como a senhorita Challenger, que vivem em clima temperado, com variações de temperatura bem acentuadas e definidas, os efeitos dessa persistência costumam ser devastadores. Agora, acrescente se a esta constância a alta taxa de umidade relativa do ar. Na faixa equatorial, esta taxa chega a quase 95%, é como respirar debaixo d’água. A umidade do ar e o renitente calor fazem um consórcio no mínimo inusitado, e a cidade de Manaus, por isto, tem uma certa atmosfera devoniana mais apropriada ao metabolismo dos grandes répteis que ao sangue quente dos primatas superiores.

O problema é que o efeito do calor em certos metabolismos não é algo exatamente passageiro. Euclides da Cunha, o celebrado autor de Os Sertões, por exemplo, homem ultrasensível, logo percebeu que com aquele calor Manaus era um ecossistema ideal para as palmeiras. Quanto aos seres humanos, bem, deixar se exporão calor de Manaus poderia ter resultados imprevisíveis. O próprio escritor, ainda que confortavelmente hospedado numa bela casa em Adrianópolis, bairro de clima ameno, aparentemente sofreu danos irreparáveis. De volta ao Rio, suas atitudes não mais pareciam ser conduzidas por um cérebro em perfeito estado, acabando por se envolver na tentativa de homicídio que lhe tirou a vida. Isto sem que antes ele tivesse notado a realidade extravagante do lugar, com surpreendestes contrastes urbanos, as mansões e palacetesart nouveau ao lado de periclitantes palafitas, o movimento humano nas ruas que colocava na mesma calçada ingleses empertigados e tanques apressados ao lado de indígenas em andrajos e nordestinos achamboados, fosse lá o que fosse que ele queria dizer com isso. As rápidas pinceladas de Euclides da Cunha davam conta de uma cidade de ritmo nervoso, que exalava ambição em cada esquina e, na busca pela riqueza rápida, seus habitantes pareciam levar uma vida provisória que não lhes permitia a menor reflexão sobre a própria cidade. Muito do que este trágico e celebrado autor escreveu sobre Manaus ainda é inteiramente pertinente. Quase vinte anos depois, um outro visitante percorreria as ruas de Manaus e enfrentaria o calor com uma boa dose de sarcasmo, o que aparentemente o salvou de quaisquer sequelas no regresso. O visitante era Mário de Andrade, criatura arejada por natureza, que entre um banquete e outro, ainda encontrou tempo para conversar com os intelectuais da terra e registrar uma espécie de falta de sintonia entre o projeto urbano, que era típico da virada do século, e as proporções acanhadas desse mesmo projeto. Sem se preocupar com o calor, mas dando sempre estocada nos intelectuais “passadistas” da cidade, Mário de Andrade se sente agredido com a arquitetura de Manaus, com aquele art nouveau pretensamente sóbrio mas na verdade ostentatório, sem  grandiosidade dos originais europeus que queria imitar, como se aquelas avenidas, praças e palácios tivessem sido achatados, miniaturizados, acachapados por alguma perversa timidez equatorial ou, ele não soube dizer, pela síndrome de banho turco que a tudo encolhe e emagrece. Mas se o poeta nada sofreu, a viagem não deixou de ter suas consequências, pois foi no calor de Manaus que ele concebeu a síntese do brasileiro: a total ausência de caráter.

Está certo que eram homens bem diferentes, mas cada um deles experimentou ali algo substancial. Euclides da Cunha sofreu o clima como somente ele podia sofrer, na contramão do riso e do olhar irônico do poeta Mário de Andrade. Mas aqui entre nós, sem que ninguém nos ouça acho o calor sufocante e a falta de caráter tão novo rico de Manaus duas virtudes que só um amazonense pode perceber. Duvido que uma inglesinha de nariz empinado compreendesse essas coisas.

Com um clima nada ameno, Manaus está longe de ser uma cidade de cura. Ao contrário, a capital amazonense está mais bem aparelhada para corromper. E isto a toma atraente, porque nada mais plácido e horrendo que o ambiente de sanatório de certas cidades de bons ares e clima temperado, com os seus tísicos e pálidos turistas a se banharem em águas sulfurosas e medicinais. Manaus é exatamente o contrário disso, é cidade onde se contrai, não onde se cura. E se o calor, além de convidar à deselegância, pede banho, muitos banhos, ali não se vai encontrar águas cristalinas, mas o acetinado dos igarapés gelados ou as águas escuras e mornas como placenta do Rio Negro. São águas que nada curam, mas despertam uma euforia primeva que deve ter sido experimentada, ainda na aurora da vida, pelo primeiro bicho a abandonar o mare experimentara terra, milhões de anos atrás.

Tenho a impressão de que logo a senhorita Challenger chegaria à conclusão de que o calor era o responsável pela ciclotímica e ralentada excentricidade de seus habitantes, o que não é toda a verdade, embora o calor ali tenha peso, espessura e volume, fazendo o tempo fluir com uma lentidão desesperadora, como se nadasse numa sopa primordial que a umidade sintetiza sem parar, sob a temperatura constante e inabalável. Se bem que teve um inglês que não achou nada disso. Foi o naturalista Wallace, homem tão particularmente extravagante que chamou de pais romântico aquela fornalha. O que vem provar que excentricidade não é privilégio de ninguém. Mas excentricidades à parte, minha personagem não era nenhuma descendente de Wallace, mas do professor Challenger, que acharia tão absurdo chamar o Amazonas de romântico quanto encontrar inteligência num londrino médio.

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