Manaus, 28 de março de 2024

Ivan, Ubaldo e Suassuna

Compartilhe nas redes:

Nestas últimas semanas perdi três amigos escritores e membros da Academia Brasileira de Letras. O primeiro, que já se encontrava enfermo, foi o poeta Ivan Junqueira. Trabalhamos juntos na Biblioteca Nacional e na Funarte, onde o poeta era funcionário desta última. Excelente tradutor e um eficiente editor, Ivan cuidou da bela revista “Poesia Sempre”, editada pelo Departamento Nacional do Livro da Biblioteca Nacional, e mais tarde, na Funarte, cuidou com esmero da revista “Piracema” e do Setor Editorial, responsabilizando-se por um conjunto de obras nos campos das Artes visuais, cinema, teatro, dança e música. Perfeito cavalheiro, com o porte de um nobre inglês, era uma personalidade esfuziante, de muito senso de humor. Trabalhar com ele era um privilégio e na Funarte fazia parte de uma equipe de mestres e artistas de grande mérito que nunca poderão ser substituídos. No final da minha gestão, pediu-me para aposentá-lo, já queria se dedicar ao seu lavor poético e realizar traduções dos poetas que amava. Acompanhei a sua enfermidade e amigos comuns, que visitavam o poeta, reportavam-me que nada conseguia alquebrar seu senso de humor e amor pela poesia. Nem bem tentava encontrar uma maneira de absorver a morte do amigo, recebo a inesperada morte do João Ubaldo Ribeiro. Ao longo de nossa amizade de mais de trinta anos, vivemos muitas aventuras e privei de uma das mais brilhantes inteligências do nosso Brasil. Nos últimos anos João me confessou que se limitava a ler e reler Rabelais na tradução inglesa, não tinha mais, como também não tenho eu, paciência de ler o que se produz hoje em nosso país: uma literatura voltada para o próprio umbigo, de gente que não sabe escrever, mas sabe muito bem se promover. Um dos aspectos especiais da personalidade de João era seu histrionismo, sua capacidade de criar personagens e fazer imitações. Dominando a língua inglesa, capaz de fazer as traduções de suas obras para este idioma, podia falar os mais diversos sotaques. Esta habilidade ela usava para criar personagens: como o coronel britânico extremamente racista veterano da índia, ou a milionária sulista. Mas não posso deixar de mencionar a viagem de trem que fizemos entre Frankfurt e Berlim, ainda dividida pelo muro, na companhia da querida Lygia Fagundes Telles, através da então Alemanha Oriental. João encarnava um nazista gay a caminho de uma convenção na Capital do Reich.

Cada vez que pavamos numa estação e entrava as sinistras equipes de controle de passaporte, para desespero de Lygia, baixava o tal desmunhecante nazista. Como ele não falava alemão, mas uma algaravia supostamente germânica, os soldados comunistas olhavam atônitos para aquele sul americano bigodudo cheio de exóticos trejeitos. Dou agora um salto para Cuba, onde estávamos como membros do júri do Prêmio Literário da Casa de Las Américas. Depois de duas semanas de fervor revolucionário, todos nós já estávamos fartos.

Para completar, colocaram um rapaz que estudava língua portuguesa para nos acompanhar.         O jovem era um comunista insuportável, tão sectário que ao dar um bom dia achava um modo de citar Lênin. Um dia, estávamos no café da manhã quando o rapaz chegou. João pediu a ele uma moeda, que fez desaparecer no ar, para surpresa de todos nós. A seguir solicitou que apanhasse uma laranja no buffet e colocasse na mesa onde estávamos. Foi atendido e pediu que o mesmo cortasse ao meio a laranja com uma faca. Ao cortar o jovem descobriu perplexo que a moeda estava lá dentro da laranja. Foi então que João arrematou o feito pedindo ao jovem que explicasse aquilo à luz do materialismo dialético.

Este era João Ubaldo Ribeiro.

E como se não bastasse lá se foi mestre Ariano Suassuna, com quem, a despeito das diferenças de geração, tive o privilégio de sua generosa amizade e admirar seu destemor em defender a cultura nacional.

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques