Manaus, 29 de março de 2024

Isto é Serpa!

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paul markoy*Paul Marcoy

Tomando o rumo norte-nordeste havíamos ultrapassado a foz do Madeira defronte à qual, por um tempo excessivo, havíamos retido o leitor. A chalupa [Santa Marta] adentrava agora o curso sinuoso do arquipélago de Canini, um grupo de ilhas separadas por canais sombreados por palmeiras e puchiris onde vivem pauxis (Crux cristatus ou curaçau de crista) e papagaios de trazeiro vermelho. Depois de navegar por quarenta e cinco minutos estávamos cruzando a foz do rio Urubu, famoso pelo massacre de índios Caboquena perpetrado em 1695 por ordens superiores por Pedro da Costa Favela (setecentos desses índios foram mortos, quatrocentos aprisionados e trinta de suas aldeias reduzidas a cinzas). Logo abaixo dessa foz fica a vila de Serpa, que consiste de umas trinta casas dispostas em linha num barranco amarelo-pardo que se eleva a dez pés sobre o nível da água. As casas ficam tão juntas umas das outras que a uma certa distância parecem um só edifício. Ao redor das casas há uma extensão considerável de grama amarela e ressecada; ao fundo eleva-se o paredão verde da floresta. Isto é Serpa!

Apesar de que a nossa chalupa tinha tão pouco calado que podíamos navegar junto à margem e distinguir, no meio da vegetação, as flores e as vagens verdes de alguns galibis, procuramos em vão por um morador ou por uma janela aberta no alinhamento de casas. Tudo estava fechado e silencioso. Assim que mudamos o rumo, o barulho das roldanas mal engraxadas da chalupa acordou alguns cães de guarda que não havíamos visto. Sete ou oito cães, todos pele e ossos, arremeteram para a margem do rio seguindo-nos com latidos furiosos.

Essa cidade fantasma, que logo perdemos de vista, ficava em 1755 na margem direita do Madeira, cerca de uma légua abaixo do canal Urariá-Tupinambá de que já falamos. O seu fundador, Joaquim de Melo e Póvoas, a havia formado com índios Abacaxis e se chamada Itacoatiara – Pedra Pintada. Incendiada pelos Muras, foi reconstruída em 1770 na foz do Madeira, povoada com índios Torás e chamada Abacaxis. Os Muras destruíram-na outra vez. Foi então deslocada para a margem direita do Amazonas e denominada Serpa, tendo uma população procedente de inúmeras tribos (Saras, Baris, Anicorés, Aponariás, Tururis, Urupus, Jumas, Juquis e Pariquis. Todas essas tribos estão hoje extintas). Aqui foi novamente atacada pelos Muras, que a reconheceram apesar do novo nome e outros disfarces. Para escapar a essa perseguição, a infeliz cidade abandonou a margem direita do rio e se refugiou no sítio onde a encontramos, na margem esquerda.

Deixando Serpa, a chalupa rumou para a margem oposta singrando as águas do Amazonas com três pontos de vento na vela. O barulho agradável da água espumando sobre a proa evocava o murmúrio do oceano. Embalado por essa música esqueci de observar a vila de Silves que já deixamos para trás na margem esquerda.

*Trecho do livro “Viagem pelo rio Amazonas”, de Paul Marcoy, pseudônimo do artista e aventureiro francês Laurent Saint-Cricq (1815-1888). Tradução, introdução e notas de Antônio Porro, 2ª edição, EDUA, Manaus, 2006. Parte do relato da aventura realizada em meados de 1847, em que o autor desceu o rio Amazonas desde a fronteira do Peru até Belém do Pará.

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