Manaus, 28 de março de 2024

Um gigante singular

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Nelson Ascher*Nelson Ascher

A nova edição da poesia completa de Ferreira reafirma que o poeta é muito maior que sua militância política. Sua obra o coloca no panteão das letras nacionais.

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Prestes a completar 85 anos, o poeta maranhense Ferreira Gullar lança uma nova edição de sua poesia completa, uma das grandes realizações da literatura brasileira e também uma história de buscas e autodescobertas. Pois, como se comprova em Toda Poesia (José Olympio; 664 páginas; 70 reais), ao contrário dos cantores, poetas encontram e refinam a própria voz com a idade. Já seu primeiro livro, Um Pouco Acima do Chãoque, publicado aos 18 anos, foi mais tarde renegado -, tinha muito de estranho e interessante na combinação de talento óbvio com escassez de recursos literários, uma vez que o repertório de formas e estilos do poeta se limitava àquilo que pudera amealhar numa biblioteca de província. Logo, porém, ele encontra na poesia de seu tempo uma linguagem condizente e, mudando-se para o Rio de Janeiro, começa a escrever coisas diferentes, que reunirá em A Luta Corporal (1954). Os jovens concretistas de São Paulo veem fortes afinidades no livro, o que dá início a uma amizade colaborativa. Mas essa aproximação se encerra na ruptura de 1959, quando Gullar, com alguns artistas plásticos, funda o neoconcretismo, movimento que capitaneia até que sua politização e a agitação dos anos 60 o transformam no poeta brasileiro engajado por excelência.

Sua militância não se restringiu, obviamente, à literatura. Ele lutou por causas diversas, ingressou no Partido Comunista Brasileiro, foi perseguido e preso pela ditadura, exilou-se e é, hoje, um crítico da esquerda que está no poder. Pode-se discordar de qualquer posição política tomada pelo poeta, mas não pôr em dúvida sua honestidade. Ele também sempre defendeu muito bem seus pontos de vista em artigos e ensaios. No entanto, quando quer que tentasse colocá-los em verso ou incorporá-los à poesia, esta lhe opunha uma resistência ferrenha, evidente nos Romances de Cordel (1962-67), que escreveu para o Centro Popular de Cultura da UNE, mas visível nos seus outros poemas políticos. Assim como, no início, a dicção parnasiana não lhe oferecia recursos para dar forma à sua poesia, a grande política tampouco parecia ter afinidade com tudo o que, nos seus poemas, se tornava cada vez mais característico, expressivo, indispensável.

Gullar continuou escrevendo o que é melhor chamar de poesia militante – por exemplo, seu poema sobre a morte de Che Guevara, que dá título à coletânea de 1975 Dentro da Noite Veloz – talvez por sentir que fosse seu dever, algo decerto acentuado pelo golpe de 1964. Isso o levou a ser visto como o poeta perseguido, um bardo da resistência. Mas seguir enfatizando isso como seu principal mérito equivale, trinta anos após o fim da ditadura, a reduzir uma carreira rica, de mais de sessenta anos e ainda em curso, a nota de rodapé de um episódio detestável da história nacional. Ademais, todos os elementos de sua visão de mundo, incluindo os políticos, transparecem mais do que claramente nos muitos poemas sobre o dia a dia: o mero acordar de manhã, escovar os dentes, abrir a janela, descer à rua, vagar pela cidade, entrar no mercado e comprar frutas (as frutas que unem seus primeiros livros aos mais recentes, bem como ligam sua poesia a Cézanne e às naturezas-mortas holandesas, lembrando que o poeta Gullar é também crítico de arte), E é isso que torna seu Poema Sujo (1975) uma obra bem-sucedida. O texto de Gullar é menos uma autobiografia que um testamento poético à maneira do poeta tardo-medieval francês François Villon (que escrevera o seu próprio na prisão em que aguardava o enforcamento). Escrito quando o poeta brasileiro vivia no exílio em Buenos Aires e temia ser assassinado pelas forças da repressão, está eivado de referências políticas, mas contextualizadas como parte de um tempo recuperado. Ou seja, lida com a totalidade de sua vida: infância e adolescência, São Luís do Maranhão e Rio de Janeiro, a descoberta da poesia, sexo e artes visuais, a opulência do mundo e a miséria das pessoas, além da política. Se há muito dessa última, o problema é da vida em questão, não do poema. E, em cada novo livro seu, o que tem aparecido é uma poesia cada vez mais precisa e seca, mais ampla e sutil, mais apaixonada pela própria poesia, pelas artes, pela singularidade humana e mais realizada tecnicamente por detrás de uma enganosa simplicidade.

Uma consequência do rompimento dos anos 50 com os concretos foi a rixa de mais de meio século entre Gullar e Augusto de Campos – que, aos 84 anos, está lançando outro (Editora Perspectiva), uma coletânea que, na sua brevidade, contém alguns dos mais belos poemas da língua. A querela levou poetas, críticos e professores a tomar partido, chamando um participante de herói e o outro de vilão. Mas há uma maneira fácil de não cair nesse equívoco: ler a obra de ambos. Quem o fizer só pode concluir que tudo o que os aproxima é muito mais do que quanto os separa, desde o tipo de poesia que fazem e admiram até os poetas com os quais aprenderam sua arte (Drummond, João Cabral, Mallarmé). E uma rixa assim entre os dois maiores poetas brasileiros vivos não pode deixar de evocar um conto de Jorge Luis Borges no qual dois teólogos medievais passam a vida se digladiando selvagemente por causa de divergências insignificantes. Mas quando, depois de mortos e já no Paraíso, um deles tenta explicar a Deus os argumentos de cada qual, Este não consegue ver diferença alguma entre eles. Pois, para Deus, ambos os polemistas eram a mesma pessoa.

*Poeta. Jornalista. Artigo na Revista Veja na edição 2437, de 05/08/2015.

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