Manaus, 19 de abril de 2024

Exclusividade do Amazonas

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Não é incomum ser procurado por jornalistas estrangeiros. Quem se arrisca a viver em Manaus sabe que essas coisas acontecem. Há sempre alguém se aventurando aqui por algum motivo. Essas equipes internacionais, de TV, de jornais, de universidades, não cessavam de passar por Manaus. E acabam sempre na minha casa. Chegam como se estivessem sob a influência de … do quê? Dos cheiros? Do calor? Sem motivo aparente, com uma sensação de brusca alienação, eu me sinto um estrangeiro também. Quero me perder nas ruas de Manaus, observá-las com a mesma estranheza daqueles olhos verdes, azuis, com suas barbas de exploradores antigos, sandálias artesanais e bolsas de couro contrastando com os caros equipamentos fotográficos. Mas deve existir algo decididamente elusivo no ato de viver em Manaus, há esta irrealidade provavelmente ativada pelo clima que compele a imaginação a se transformar em relâmpagos de lucidez, que vão esmaecendo nos labirintos do isolamento tropical, uma navegação aquática; nada parece real, a miséria funde se com a simplicidade, as cores berrantes com a opacidade das pessoas, a calmaria dos gestos com a turbulência da consciência que se afoga, mas tudo em subtons, como uma melodia plangente inspirada em árvores submersas. E eu já não pergunto mais o que vêm fazer aqui, porque as perguntas que fazer são impossíveis de responder. Então, eu me perco. Não como um estrangeiro, mas como um nativo no colapso da familiaridade.

Igual à lenda de Theodore Mommsen. Mommsen, um dos grandes historiadores da era clássica, nasceu e viveu na velha Berlim guilhermina. Suas conferências eram famosas pela erudição e agudeza literária, pois era capaz de descrever durante horas e horas a geografia de Atenas do tempo de Sócrates, assinalando as ruas, os logradouros, as fontes, reconstruindo o espaço onde muitos diálogos ocorreram, chegando à minúcia de localizar certas casas, como a de Lisias, que vivera com Epícrates, segundo uma passagem do Fedro. No entanto, Mommsen precisava de um assistente para caminhar na rua.

Ele, que era capaz de identificar o templo de Zeus Olímpico na Atenas do século V, não conseguia se orientar no trivial percurso entre o Zoológico e a UnterdenLinden. Mas, voltando ao Amazonas, tinha essa jornalista que fazia então um documentário para a BBC. Foi uma entrevista um tanto tumultuada, confesso. Eu não queria falar da Amazônia. Será porque eu vivia tão desorientado em Manaus quanto Mommsen em Berlim? Recordava do tempo em que ir a lugares como a Amazônia era ir ao reino do desconhecido e da aventura. Terras como a Amazônia eram desafios, mas desafios com estatura humana e não estatísticas de catástrofes.

Naquela época, cada relato de viagem podia ser um assombro, uma coleção de portentos que celebravam a diversidade das civilizações, o capricho e a força da natureza indomada, a viva face da tenacidade. Esses aventureiros’ arriscavam tudo porque ofereciam suas próprias vidas e, ao regressarem, salvos e abatidos pelas durezas das jornadas, nos remetiam de volta à delicadeza do dia a dia, ao conforto da civilização, à crença arraigada no encanto prosaico da vida nas cidades. O Ocidente era um telhado de ardósia, uma boa e decente mesa, e o café da manhã tomado negligentemente ao som do vento nos chorões. Agora tudo não passava de mundos em crises morais. Um mundo sem I senso de humor. A repórter da BBC estava suando por todos os poros, e no rosto lívido, de fundas olheiras apenas os lábios finos ainda apresentavam alguma cor, um leve tom esmaecido de vermelho, memória do sangue correndo num metabolismo ralentado pelo calar opressivo. Vivemos num mundo instável, pensei. E esses jornalistas não percebem que Manaus é uma singularidade, como um buraco negro. Mas é nessa cidade que eu vivo e celebro seus 345 anos.

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