Manaus, 28 de março de 2024

Era dezembro em Lisboa

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– Desculpe-me?!  Não queria importuná-lo!

Viro o rosto para o lado da voz e confirmo: alguém tenta puxar conversa. Parece que não tem jeito senão encarar. Miúda, macérrima, branquelinha. O globo ocular dilatado pela espessura dos óculos de vários graus. Rosto de vinte e poucos. Cabelo escarlate, de tamanho médio, contrastando com a tiara de pérolas negras. Do pescoço, dezenas de colares de pérolas púrpuras e  coloridas desciam em cascata cobrindo o fresco colo não alcançado pela blusa de rendas brancas.

Anjinha ou diabinha? Nessa época costumam se perder por aí!

Ela me indaga e argumenta:

– Posso lhe perguntar uma coisa? É pessoal, mas lhe garanto ser coisa rápida!

– Pois, pois, anime-se, minha jovem! – digo-lhe à maneira concordante, pois, creio que não adiantava dizer-lhe não.

Diminuo a cadência do andar, para emparelhar meus passos com os dela.

– O senhor é parente do Damasceno? – foi ela direta ao ataque.

– Não tenho parentes com esse nome! – respondo-lhe, como manda a boa educação, imaginando tratar-se de uma dessas inocentes inquisições que nós, mais velhos, somos levados a aturar da parte dos mais jovens. Contudo, eu, pessoalmente, entendo que até nisso há algum divertimento a ser aproveitado, pois não!. Igualmente, agora, quando tenho ao meu lado, de certa forma, uma pessoinha curiosa, ou a curiosidade em pessoa!

– Mas o senhor lembra muito! – disse-me ela.

Redobro a atenção sobre a minha interlocutora, agora instigado pelo seu modo de falar, num tom expressivamente alto, como a querer ser ouvida por todos, num raio de cinqüenta metros.

– Lembro muito? Como assim? – indago-lhe emitindo também voz alterada, certamente induzido pela praga da sugestão, mas me contenho rapidamente, retomando o tom natural de minha voz.

– O cabelo… as feições… o seu jeito de andar… parecido mesmo!. Quando o senhor sorriu pareceu mais ainda! – descreveu-me ela, assim.

Não me lembro de ter sorrido – penso cá comigo!  Mas vá lá que eu tenha sorrido, e daí? É até possível que muitas pessoas tenham sorrisos parecidos, vozes parecidas, feições parecidas, pois a humanidade não foi pensada com muita criatividade o que faz com que muitas pessoas sejam iguaiszinhas umas às outras, sem tirar nem por, com forte acentuação quando se trata de comparar caracteres.

– Incrível! – disse-me ela, pondo-se à minha frente, para me frear um pouco, sendo clara a intenção de transformar-me num alvo fixo, objeto de sua admiração. E ficamos instantaneamente frente a frente.

Ela pronunciou um “incrível” tão convincente, com tal entusiasmo que parecia aprovar a minha aparência com a do seu amigo, e foi o que me fez estancar ali, interrompendo o fluxo dos passantes. Nada me restava senão a posar, encarando seus olhos dilatados, como se estes fossem o zoom de uma câmera zombeteira.

“Incrível” é sua atitude, mocinha! – pensei em dizer, mas fiquei cá com meus botões. Procurando explorar no que de divertido a situação me punha. Busquei construir uma pilhéria, caprichando no tom irônico:

– Então, seu amigo é tão feio assim para se parecer comigo?

Acho que ela não entendeu, porque não vi no seu rosto o despertar de nenhuma valorização, por menor que fosse, ao meu propósito de lhe parecer engraçado.

– O Damasceno… continuou a falar, mas parou de repente, atingida por algo mais importante a cuidar. Vi que comprimia os lábios para embargar um sorriso, o que fez com que suas bochechas ficassem mais vermelhinhas, combinando com os matizes do seu cabelo. Tive a impressão que seus pensamentos se ocupavam de alguma coisa que não queria revelar, mas – suponho – de muito significado para sua apreciação pessoal.

Retomando a conversa, ela veio com um pedido de perdão que me deixou, a princípio, sem entender nada:

– Ora, me perdoe, o senhor, a intimidade de chamar o Damasceno sem o tratamento de professor!

– Acontece! – fui o que pude balbuciar.

– O senhor sequer o conhece, e eu aqui a tratar o Professor Damasceno sem a menor cerimônia.

– Não tem problema!  (evito o acontece).  Acredito mesmo – ponderei cortesmente – que, se aqui presente, o próprio Damasceno não se importaria com essas questões de títulos.

– Damasceno!. Professor Damasceno!  Professor!

O que foi agora? Assusto-me de verdade pois me parecia estar sendo criada uma situação nova. O timbre da voz dela se elevara de tal maneira que poderia ser facilmente contratada como soprano. Dou-me conta, porém, de que ela não mais estava falando comigo. Estava, sim, acenando e apoiando-se nas pontas dos pés, virada na direção do interior de uma loja movimentada. Acompanhei a trajetória do olhar ela. Não dava pra saber quem era o ilustre professor no meio de tanta gente a se misturar, numa loja cheia, na avidez das compras de fim de ano.

– Viu só, o senhor me dá sorte! Ali está o professor Damasceno em pessoa! Como o senhor acabou de profetizar! Ele se fez presente! Desculpe… Como é mesmo seu nome?

Dei o meu nome, mas tenho certeza que ela não me deu ouvidos. Sem dizer mais nada, afastou-se, aos saltos, possuída de entusiasmo, quase atropelando as pessoas à procura da entrada da loja onde se encontrava o objeto de sua – digamos – incompreensível animação.

Percebo, então, a minha própria patetice: feito uma estátua, identificado desde sempre com interesse de uma pessoinha desconhecida, tentando adivinhar com os olhos, entre os tantos que se encontravam naquele burburinho, quem seria esse a quem chamam-nodamasceno.

Nesse ínterim, perdi-a de vista. Felizmente! Ou infelizmente?

Na saída do outlet, um impulso incontido me fez voltar o rosto na tentativa de uma vez mais ver aquela alminha branca de aura vermelhíssima.

No hotel, dou-me ao espelho do quarto a fazer simulados sorrisos, imaginando que tem por aí, à solta, um dito professor, que tem minha aparência e que copia o meu sorriso. Encaro-me, séria e demoradamente. Êpa! Observo precisamente que há um intruso, com olhos dilatados, querendo saltar do interior do meu rosto para fora! Que belo impostor, você, hein?!

Recomponho-me, porém, cortando o insólito diálogo que inevitavelmente se estabeleceria entre eu e a figura espectral. Raios! Eu, hein! Esses espelhos antigos têm cada uma!

Para o próximo ano já tenho duas promessas: não dar trelas para rapariguinhas de cabelos escarlates e olhos dilatados, e não me demorar ao espelho, principalmente, em hotéis antigos!

Era dezembro em Lisboa.

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