Manaus, 28 de março de 2024

Conceito à deriva

Compartilhe nas redes:

João Cezar de Castro Rocha
*João Cezar de Castro Rocha

A cordialidade de que fala Sérgio Buarque de Holanda costuma ser entendida como um traço

Definidor da identidade nacional. Isso é um equívoco que limita o alcance da ideia. A noção do homem cordial como síntese do brasileiro foi proposta por Gilberto Freyre, que relacionou cordialidade a miscigenação.

Um fascinante mal-entendido tem assombrado a história cultural brasileira nas últimas oito décadas.

Em 1936, ao publicar seu livro de estreia, Sérgio Buarque de Holanda teria identificado o perfil da identidade nacional: a cordialidade. No entanto, para o leitor da obra, essa associação desinibida surpreende. No fundo,Raízes do Brasil é um ensaio-manifesto contra a ideia de cordialidade. Sérgio Buarque desenvolveu o conceito para dar conta da formação social brasileira nos séculos nos quais o mundo agrário era dominante. Ao mesmo tempo, ele apostou suas fichas no universo urbano e industrializado, que, em tese, deveria varrer o homem cordial do mapa. No passado agrário, a família patriarcal ditava o tom das relações, forjando uma sociabilidade sujeita aos privilégios deste ou daquele grupo, em lugar de investir num projeto coletivo, corporificado na metáfora do espaço público.

A noção de cordialidade supõe a existência de círculos restritos, na prática fechados, muito pouco porosos a pressões externas. Todo grupo caracterizado por um alto teor de coesão e de autocentramento pode ser descrito como cordial. Eis a verdadeira intuição do autor de Visão do Paraíso, que ainda hoje temos dificuldade de compreender. Ora, por que não arriscar análises cordiais de sociedades secretas, como a máfia italiana? Ou da dinâmica de certos partidos políticos? Ou da vida universitária? Ou do meio literário? Nesses casos, estamos às voltas com grupos sempre dispostos a apropriar-se dos meios públicos para financiar interesses privados. E isso – bem entendido – em qualquer latitude. Tal compreensão teórica do conceito é a forma mais eficaz de driblar o teimoso mal-entendido.

Em Raízes do Brasil, a cordialidade não é um traço exclusivamente nacional. Por isso, na imaginação crítica de Sérgio Buarque, a abolição e a urbanização condenariam o homem cordial ao museu da história do Brasil

– ruína do passado agrário, a ser devidamente superada pela modernização. Esse é o sentido forte de sua resposta a Cassiano Ricardo: “O homem cordial se acha fadado a desaparecer, onde ainda não desapareceu de todo. E às vezes receio sinceramente que já tenha gasto muita cera com esse pobre defunto”. Palavras duras, escritas em 1948, e que esclarecem o tropeço dos que veem no conceito mais uma das perversas maquinações da elite econômica para inventar uma “identidade nacional”, a fim de ocultar desigualdades e injustiças. Pelo avesso, entendido sociologicamente, o conceito de cordialidade favorece uma crítica certeira das práticas usuais das elites políticas, econômicas e culturais, ao pôr a nu a mentalidade de clube fechado que informa suas ações.

O raciocínio de Sérgio Buarque é meridiano: se o homem cordial se tornou anacrônico pela modernização do país, ele não pode ser a imagem de uma multissecular identidade! E nem é exigido do intérprete um talento especial; basta ler o ensaio. Voltemos ao texto de 1948: “Quero frisar, ainda uma vez, que a própria cordialidade não me parece virtude definitiva e cabal que tenha de prevalecer independentemente das circunstâncias mutáveis de nossa existência”. O homem cordial, portanto, não define a brasilidade, porém oferece uma poderosa categoria sociológica, ainda pouco explorada teoricamente.

Elementar, não é mesmo?

Talvez nem tanto: a história cultural é muito mais dependente de leituras míopes e de desinteligências deliberadas do que gostaríamos de reconhecer. Voltemos ao mal-entendido. Disse que se tratava de um fascinante desentendimento, pois, no. meio do caminho de Raizes do Brasil, havia outro autor igualmente fundamental: Gilberto Freyre. O mal-entendido acerca da cordialidade como figura da brasilidade é uma invenção freyriana!

Impressionado com a recepção do chamado romance nordestino, o visionário editor José Olympio criou a

Coleção Documentos Brasileiros, destinada a divulgar estudos acerca da formação social e histórica do país.

Em 1933, Gilberto Freyre provocou uma revolução no plano das ideias com Casa-Grande & Senzala. O editor não encontrou melhor nome para coordenar seu projeto. Freyre decidiu inaugurar Documentos Brasileiros com o ensaio de Sérgio Buarque. Logo, foi um dos primeiros leitores, se não o primeiro, deRaizes do Brasil.

Há mais: no mesmo ano de 1936, Freyre lançou Sobrados e Mucambos, citando Raízes do Brasil como título de referência, sublinhando especialmente o conceito de homem cordial. O círculo se fecha: a noção do homem cordial como síntese do brasileiro foi proposta ‘por Gilberto Freyre, e não por Sérgio Buarque. Foi o autor de Assombrações do Recife Velho que relacionou cordialidade a miscigenação, vendo no mulato o homem cordial por excelência e descobrindo na afabilidade e na simpatia virtudes topicamente cordiais. À deriva, o conceito escapou das páginas para converter-se em personagem do dia a dia. Assinale-se o paradoxo: embora não faça mais sentido repetir o clichê do caráter cordial do brasileiro, práticas cordiais seguem dominantes no mundo da política e no universo da cultura.

A ironia é saborosa: Sérgio Buarque e Gilberto Freyre estavam ao mesmo tempo certos e equivocados. Sérgio Buarque acertou em cheio: o homem cordial é sobretudo uma expressão histórica do passado agrário. Freyre viu longe: a cordialidade adaptou-se muito bem à modernização e seguiu atuante no meio urbano. Isto é, para tornar o mal-entendido uma provocação ao pensamento, deve-se enriquecer a tese de Sérgio Buarque com a perspectiva de Freyre. E, para nuançar o olhar deste, impõe-se resgatar a advertência daquele. Não será essa a lição mais importante para um país dividido por uma intolerância política e intelectual que não sabe senão transformar o interlocutor em cúmplice ou em inimigo?

*Ensaísta. Professor da UERJ. Texto na Revista Veja nº 2491, de 17/08/2016.

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques